O cadáver frio

Nas artes, a figuração do cadáver humano serve para  exaltar o heroísmo ou o martírio. As duas coisas andam juntas com frequência. Para tanto, o cadáver deve inspirar sentimentos que podem ser de horror, de tristeza, de revolta ou de inspiração exemplar.

Mas há representações nas quais o corpo morto é esvaziado de qualquer emoção. Isso ocorre quando ele aparece como um objeto científico. A ciência o torna neutro. Em nome do conhecimento, somos convidados a comportar-nos de modo superior, como adultos racionais que não se perturbam. Princípio presente nas imagens que figuram lições de anatomia.

As dissecções humanas tomam um impulso discreto com o renascimento. Essa disciplina científica associa-se à evolução das artes. Não basta mais aos pintores e escultores estudarem a partir do modelo vivo ou da estátua grega. É preciso saber como o corpo funciona, para recriá-lo com vigor e verdade.

O próprio Michelangelo foi anatomista. Seu contemporâneo, Bartolomeo Passarotti, deixou, num desenho (Louvre) o testemunho visual sobre a aula que o grande gênio dava ao dissecar um cadáver. A viva movimentação dos personagens, numa composição que flui, desvia nosso olhar do morto. Michelangelo, no centro, sentado num banco, entre as pernas do cadáver, manipula o corpo sem cerimônia. Outros aproveitam para desenhar, modelar, anotar. 






As dissecções anatômicas eram sujeitas a restrições duras, ou francamente proibidas em alguns países. Os cirurgiões porém - cujo  estatuto, na epoca, era inferior aos dos médicos, que estudavam pelas velhas teorias da antiguidade - sabiam o quanto essa prática era importante.







Este é o frontispício que orna um tratado de anatomia (1656), publicado em Frankfurt, escrito por Giulio Casserio, anatomista italiano. O rosto do cadáver foi coberto por um véu para diminuir seu aspecto humano. Apenas o ventre está aberto: o início clássico das aulas de anatomia devia se dar pela evisceração. No fundo, um esfolado e um esqueleto - instrumentos do saber. Nas prateleiras, as ferramentas que servem à habilidade do anatomista. Um canivete repousa sobre a coxa do morto. O globo, no alto, mostrando a América, parece deslocado em relação ao tema, mas tem um papel metafórico: a anatomia é um novo mundo para a cirurgia e para a medicina.

Rembrandt pintou as duas mais célebres lições de anatomia da história. A Holanda tinha uma legislação mais tolerante para essa prática, e a guilda dos cirurgiões elegeu o tema como grande momento para a figuração dos retratos coletivos. A mais tardia é a lição dada pelo Dr. Deijman (1656). A tela sofreu com um incêndio e sobrou apenas sua parte central. Rembrandt rompe com as tradições, ao mostrar o cadáver deitado de frente.


Dr Deijman’s Anatomy Lesson (fragment), by Rembrandt.jpg


Ele retoma o a composição do  Lamento sobre o Cristo morto, de Mantegna (1480 circa), e o formato atual da obra a aproxima ainda mais de seu modelo.



Dr Deijman’s Anatomy Lesson (fragment), by Rembrandt.jpgThe dead Christ and three mourners, by Andrea Mantegna.jpg

No Cristo de Mantegna, a proeza plástica do escorço suplanta a sugestão de piedade: as duas mulheres que choram do lado esquerdo têm uma função sinalética. O cadáver não sentimental de Mantegna convinha bem a uma lição de anatomia. Rembrandt explora os vermelhos sanguíneos da cabeça como o faz também em seu boi esfolado. O homem e o boi são tratados e expostos na mesma indiferença emotiva.




Alex Miyoshi discutiu os mistérios da anatomia do dr. Tulp (1632), de Rembrandt, em seu último post neste blog. Quero acrescentar apenas um ponto. Os cirurgiões, nessa atmosfera luminosa que cria integração e profundidade, estão atentos, alguns deles intensamente. Mas atentos tanto ao cadáver quanto ao livro. A cirurgia não é apenas a prática de barbeiros iletrados, como ocorria então. Cirurgiões incorporam a dignidade do estudo. Livro e cadáver, num jogo de equivalências.

Graças às guildas de cirurgiões, as lições de anatomia tornaram-se uma espécie de subgênero do retrato de grupo. Rembrandt não foi o único. Jan van Neck pintou a sua em 1683: o cadáver examinado é o de um bebê. O cirurgião Frederick Ruysch mostra o cordão umbilical, seu filho de 10 anos tem nas mãos o esqueleto de um recém-nascido, como se fosse um brinquedo. É preciso educar as crianças para a racionalidade sem medos nem choros. Os rostos nada espirituais desses médicos que surgem diante do escuro acrescentam ao macabro involuntário.



The Anatomy Lesson of Frederik Ruysch; painted by Jan van Neck, 1683. Frederick Ruysch (wearing the hat) demonstrates the umbilical cord of a stillborn infant. His ten-year-old son son, Hendrick is on the right. Collection Amsterdam Museum. 



13 anos antes, o dr. Ruych aparecia, com aspecto mais jovem, de chapéu e sem papada, na tela de Adrian Backer. Backer viajara para a Itália e formara lá um espírito clássico. As estátuas nos nichos do fundo e a beleza do cadáver, tratado como um nu antigo o demonstram. Pela referência clássica, o pintor enobrece a arte do cirurgião. Cria um encadeamento de brancos sobre o fundo negro graças aos colarinhos engomados, assim como de mãos que se sucedem em gestos elegantes.



File:Anatomy Lesson by Dr. F. Ruysch 1670 Adriaen Backer.jpg



Mas da série, a mais divertida para mim é a lição do dr. Roëll, de Cornelis Troost. Estamos no século 18, em 1728. Os longos cabelos soltos caíram de moda. Foram substituídos por perucas brancas e empoadas sobre as quais se instalam alguns tricórnios. As velhas togas negras também sumiram. Troost ficou célebre por seus quadros de banquetes e festas animadas. Os personagens, com a nonchalance característica daquele tempo, se reúnem em volta da mesa, e o dr. Roël, com suas mãos saindo dos punhos rendados, tem o garbo de um anfitrião num banquete, destrinchando um joelho como o faria com um faisão ou peru.



Anatomy Lesson of Dr Willem Röell, Troost, Cornelis (1728) Amsterdam Museum.  

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