A alma do crítico

Há, no trabalho do crítico, uma séria dificuldade: o fato de existirem obras que o atraem e outras que o repugnam. Uma pulsão instintiva, interna, não só dificulta a análise, como a condiciona.

Penso nisso ao ler uma passagem do fundamental A arte no século XIX, um novo olhar, de Jacques Thuillier. Um dia ainda escrevo sobre a importância de Thuillier para a renovação dos estudos sobre o século XIX. É uma dívida inestimável que a história da arte tem para com ele.

Mas há uma passagem breve, em que as sensações mais subjetivas se vestem de rigor demostrativo. É quando ele fala de Géricault.

Sua visão das grandes obras desse mestre que morreu com 33 anos é acurada e justa. Mas ele põe o leitor em guarda contra obras menores, que não seriam dignas do pintor de A balsa da Medusa.

Sua implicância é mais forte em relação aos retratos de crianças, começando pelos os "retratos Dedreux". São imagens dos filhos de seu amigo, o arquiteto Pierre-Anne Dedreux. 


Alfred Dedreux menino, sentado no campo, Nova Iorque, Metropolitan Musem, 

"Obras conduzidas por um pincel descuidado", escreve Thuillier. Seria mesmo? O fato é que estamos nos antípodas das crianças adoráveis, frequentes em pintura, longe da encantadora garotada criada por Rafael, Chardin ou Renoir. Há uma grandeza de afresco nesta obra de 45 x 38 cm. As cores não seduzem, elas engrandecem: cinzas chumbo, brancos sujos, e esse poderoso amarelo do casaco, cujas dobras têm força escultórica. Amarelo, verde, azul, num todo cinéreo que lembra as imensas paisagens heroicas pintadas por Gericault em Roma. Em seu mundo superior, soberana sobre as pedras, como num pedestal, a criança tornou-se telúrica e poderosa.

Elisabeth Dedreux, menina, numa paisagem do campo - Fundação Pierre Bergé



O retrato de Elise Dedreux, irmã de Alfred, faz par com o quadro do Metropolitan Museum. Ele é ainda mais radical. Os rochedos sombrios invadem um céu brumoso. As cores empregadas são mínimas. O branco do vestido e das calças é desagradável, como a expressão do rosto é sem encantos. Estranha criança, intensa no seu olhar perdido, soberana no deserto inóspito na qual se encontra. Pintado com um sentimento maior do que o agrado: na grande venda Bergé/Cardin, em 2009, foi uma das duas únicas telas a não encontrarem comprador.


Alfred e Elisabeth Dedreux cianças, Coleção particular, 1816

Os dois primeiros quadros consistiram, é mais que provável, em ensaios para esta obra de tamanho maior (96 x 80 cm) e de acabamento cuidado. Nem por isso perdeu a vivacidade e o impacto dos precedentes. A seriedade e a intensidade do olhar; o modelado luzidio, que escorre e  insinua uma alma orgânica no casaco do menino; o acessório da rosa nas mãos de Elisabeth, que poderia ser graciosa e ao invés sugere algum instrumento de mágico poder; as nuvens cada vez mais escuras que penetram no alto da tela;  tudo foge às convenções do retrato infantil para nos oferecer dois jovens e poderosos magos.

Thuillier não se conforma com as crianças de Gericault. Para um outro retrato, ele lança a frase assassina: "Não é possível considerar sem mal-estar o retrato da pequena Louise Vernet, bizarra produção de um Michelangelo perdido em loja de bonecas".


Retrato de Louise Vernet menina (A menina com o gato) - Museu do Louvre, Paris

A crítica de Thuillier não impede que ele tenha percebido a grandeza da obra, já que invoca Michelangelo. No entanto, sua hostilidade lhe impossibilita compreender a coerência entre as figurações infantis concebidas por Gericault. Aqui, o gato é enorme, em relação a criança, e seu rosto inquietante faz pensar no lince de Goya. Se há alguma elegância, ela  vem contrariada pela anágua branca que se estica no joelho e pela meia enrugada. Os partidos pictóricos são os mesmos que nos retratos Dedreux: cromatismo reduzido, associação monumental com a natureza, robustez corporal, olhar que amedronta. Como seus coleguinhas, essa menina se integra na natureza concentrando mistérios.

Gericault põe de lado a imagem idealizada e comum das crianças, o que certamente conduziu Thuillier ao seu repúdio. Ele nos mostra que a infância vai além da inocência frágil. Que ela pode ser misteriosa, forte, inaccessível e perturbadora.







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