Bizarro tema

Um esgoto longo e mole. É a parte do corpo menos agradável. Produz ruídos incômodos e matéria malcheirosa. Enrola-se e não se sustenta por si só. Porém, é possível um estudo iconográfico dos intestinos, graças a um santo, bispo mártir nos tempos do imperador Diocleciano. Santo Erasmo.

Dirk (Dieric) Bouts, o velho - O martírio de Santo Erasmo (painel central) - 1458 circa - Igreja de São Pedro - Lovaina

Santo Erasmo é o patrono dos gastroenterologistas e dos marinheiros. Porque foi condenado à evisceração em vida. O suplicio existiu de fato: abria-se a barriga do infeliz e as tripas eram enroladas como se fazia com as cordas nos navios, empregando  um grande carretel chamado cabrestante.  

No quadro de Bouts, a composição simétrica, o grupo central, sólido e elegante ao mesmo tempo, lembram as relações que ocorreram entre a pintura do norte e o renascimento florentino. O jovem de perfil, o personagem central, com a vareta, poderiam povoar obras futuras de Uccello ou Gozzoli. São os seres humanos que determinam a estrutura no espaço.

O pobre Erasmo está deitado, nu, com sua mitra de bispo atirada ao chão e olhos vidrados, amarrado pelas mãos e pelos pés. De um corte minúsculo, cirúrgico, saem as tripas. Não há uma única gota de sangue. O suplício é limpo, metódico, e o intestino vai, progressivamente, se enrolando no eixo.

Esse modo preciso faz com que, quando o santo é apresentado com seu atributo lembre... um garçom de churrascaria servindo linguiça. No retábulo de Falkenstein, o bispo, retratado com o olhar intenso, ostenta, junto à riqueza dos ouros e das sedas, o símbolo, acompanhado pela palma do martírio.

Mestre de Messkirch - Retábulo de Falkenstein, Santo Erasmo - 1525


No final do século 17, Sebastiano Ricci cria um drama horripilante em que, no claro escuro, os braços se distendem, a fúria toma conta de tudo e de todos, incluindo cão e cavalo, da arquitetura rude e sinistra, dos fulgores luminosos. O santo torce a cabeça, num esgar de dor tremenda. As linhas enérgicas do encordoamento se juntam ali onde dois anjos, diante de um busto em nicho circular, preparam-se para entregar a Erasmo a palma e a coroa do martírio.


Sebastiano Ricci - O martírio de Santo Erasmo - 1694 - 1697 - Brera, Milão

Coube a Poussin realizar a obra-prima absoluta deste tema. Foi uma encomenda para o altar de Santo Erasmo, na basílica de São Pedro, em Roma. Poussin entregou a tela pronta em 1628. A obra não fez sucesso, apesar de sua fabulosa qualidade. Erasmo, rosto rude de homem do povo, lembrando os modelos do Caravaggio, está sobre uma mesa, de costas, formando um arco estirado com seu corpo. Ao lado, caídos, manto e mitra do bispo. 

O carrasco retira conscienciosamente os intestinos, apoiando a mão direita sobre o corte, de maneira a bem controlar a saída. O sacerdote pagão, vestido de branco, aponta para a escultura em ouro de Hércules, a ser venerada. Há um contraposto entre a escultura e o corpo.  Como num reflexo. Ambos são musculosos. Um está em pé, outro deitado. Um sofre, outro domina. O tema clássico do nu é mostrado no esplendor pagão e no sofrimento cristão. Os anjos voam com leveza, eles também com palma e coroa. A cena veemente se estrutura na grande tela, que tem  320 x 186 cm. Horror e drama são controlados graças à composição, que foi pensada e refletida no ponto certo, sem esfriar a paixão.. 

Nicolas Poussin - O martírio de Santo Erasmo - 1628 - Pinacoteca Vaticana






Quem quiser descobrir mais exemplos da iconografia de Santo Erasmo, clique aqui.


Comentários

  1. Obrigada pela aula Professor Coli. Ainda bem que podemos tê-lo por aqui. Mas há saudade das suas aulas presenciais... Suzete Garcia

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