Decadente Salomé


George d’Ostoya foi um caricaturista polonês (seu nome original, Jerzy Soszyński-Ostoja), com carreira na França. Também excelente desenhista e pintor. Se estabelece em Paris depois de estar engajado militarmente, fez parte da Legião Estrangeira Francesa. Suas caricaturas são publicadas especialmente em L’assiete au beurre, La Baïonnette  e Le rire, a partir dos anos 1900. Em suas primeiras obras assina apenas “d’Ostoya” a partir dos anos 1913-14 insere também o George. Múltiplo do mesmo modo que hoje esquecido, d’Ostoya foi igualmente um homem de letras, responsável por traduções e revisões de peso como diversas obras de Tolstói e Dostoiévski.

George d'Ostoya. La danse de Salomé-Germania. s/d


Não são raras, contudo suas litogravuras que passam por leilões, preços baixos e por vezes despercebidas. Uma delas em específico, quer seja por sua qualidade ou por interesses iconográficos, vale a pena olhar com lentes aumentativas por um instante.

George d'Ostoya. ilustração para 'le Rire'


Chama-se La danse de Salomé-Germania. Uma tiragem da lito passou à venda em 2012, em uma pequena galeria parisiense. O ponto imediato que atrai os olhares é a correspondência com as obras de Gustave Moreau. D’Ostoya, para sua composição, faz a paródia com o luxo e a agonia extremamente poderosos de A aparição. A antevisão de Salomé, o prêmio pela dança, a carnificina que se desenrola depois do ato é vista integralmente por ela. A cabeça piedosa ensanguentada e o tapete de sangue que se forma aos pés da princesa da Judéia faz o contraste com o corpo seminu da figura feminina, com as pedras preciosas incrustradas em seu vestido e que tanto desafiam o silêncio aparente da cena, a “belle inertie” para lembrar do termo cunhado por Ary Renan sobre a obra de Moreau.

Gustave Moreau. L'Apparition. 1876. 


Em d’Ostoya tudo é invertido, a cena pode parecer estranha, mas a ironia não escapa ao olhar. Em primeiro lugar o corpo de Salomé, a volúpia cede espaço aos seios pesados e marcados pelas fortes veias. Salomé-Germania tem em seu rosto uma máscara. As mãos de modo grosseiro retomam o gesto da obra de Moreau. O ventre saliente e os pés bem marcados. Não temos a cabeça de Iokanaan, em seu lugar um rosto aparentemente comum. Vemos o bigode e os óculos de um senhor. A frase no canto inferior direito da gravura nos dá a chave para compreender a figura:

Humilde homenagem para o sr. Delcassé, Ministro das relações exteriores. D’Ostoya



Abaixo, fora da linha que enquadra a gravura vemos a imagem de um homem saudando, provavelmente um “humilde” autorretrato em “homenagem” a Delcassé. No fundo, o próprio Guilherme II faz as honras do tetrarca. Seu característico bigode e suas vestes não deixam muitas dúvidas.

Espalhados pelo vestido, na cortina atrás da cabeça de Delcassé e acima da cabeça do tetrarca vemos a águia, símbolo do reino da Prússia.

A data indicada pela galeria para a gravura era 1900c. Data estranha e de mensuração difícil. Delcassé foi ministro das relações exteriores por duas vezes. Primeiramente de 1898 a 1905 e então por um curto período de 1914 a 1915. Improvável que a imagem tenha sido realizada antes disso. Em 1905, Delcassé teve participação negativa no incidente de Tânger e a autonomia de Marrocos. O fato, que custou seu cargo e a vitória política de Guilherme II, faz com que o ministro saia do evento mais que derrotado, ridicularizado.

Não seria impossível pensar nesta litogravura de d’Ostoya como uma ironia a este evento. Sua produção é intensa nesses anos, quase sempre política.

A ópera de Strauss, lançada em 09 de dezembro de 1905, causa desconforto a Guilherme II. Este, um fã inconteste do compositor, questiona a escolha do tema, muito vulgar. Este sentimento não era exclusivo do rei. Seja como for, a escolha do tema para a litogravura deixa a obra d’Ostoya mais intrigante e sua corpulenta Salomé-Germania mais irônica.

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