Handmaid's tale e o desejo feminino

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Há alguns dias terminei a série Handmaid’s Tale e entendi porque ela foi tão elogiada. Tomadas sufocantes mostram a República de Gilead, uma sociedade distópica na qual os EUA são governados por religiosos fanáticos que justificam suas barbaridades com trechos da bíblia. A série gira em torno da situação das aias, as poucas mulheres férteis que sobraram em um mundo em colapso ambiental. Elas pertencem às famílias dos governantes e tem como única função reproduzir. Há pontos que são especialmente incômodos, como os rituais de estupro e as cenas de flashback, que mostram o quanto as coisas podem mudar de uma hora para outra e chegar a situações que pouco tempo antes seriam inacreditáveis.

Em dado momento da série, uma delegação diplomática mexicana vai a Gilead verificar as condições de vida das aias. Não se trata de nenhuma observação internacional sobre condições básicas de dignidade. Ao contrário, estão interessados nas próprias mulheres reprodutoras, um precioso bem no comércio internacional. Uma mercadoria especial, capaz de gerar algo novo, e que - assim como a mercadoria força de trabalho em Marx – é uma engrenagem fundamental para o funcionamento do corpo social. Para controlar essa mercadoria, não basta dispor do corpo das mulheres, mas também é preciso manter seu desejo sob controle. Negar o desejo das mulheres é também negar sua qualidade de sujeito autônomo.  

Há uma cena especialmente impactante, em que uma das aias é recapturada após tentar fugir com sua companheira. Por se tratar de um bem valioso, ela não é executada como acontece com sua amada infértil, mas tem sua genitália mutilada. É preciso privá-la da possibilidade do desejo. Essa é a pedra sobre a qual Gilead está construída. E é por isso uma mulher deve vigiar o comportamento da outra. É também por isso que foi uma mulher quem escreveu as regras que inspiraram a nova sociedade.

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Enquanto assistia a série, pensei em algumas obras de Shakespeare (de quem Freud foi leitor assíduo, é bom lembrar), nas quais o desejo feminino aparece como um elemento perturbador da ordem. O desejo de Lady Macbeth é fator propulsor na ambição do marido; o possível desejo de Desdêmona enlouquece Otelo; o príncipe da Dinamarca não suporta o desejo da mãe e nega sua capacidade de agir por vontade própria: “fragilidade, seu nome é mulher”, diz em uma célebre passagem da peça. Seja em Shakespeare, em Gilead ou no mundo real, as esferas pública e privada desmoronam ao confrontar o desejo feminino. Há algo de semelhante entre o corpo da mulher e o corpo político: os dois são seres desejantes que devem ser controlados para garantir a ordem. 




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