Nada fácil para as mulheres



Dois olhos nos espreitam. Parecem emergir por trás de alguma barreira. É a tampa de prata bem polida de uma moringa que os reflete. Esses pequeninos  olhos são da pintora Clara Peeters, que viveu na Holanda, de 1594 a 1657. Como se sugerissem que as mulheres, nas artes, foram obrigadas a se inserir do modo o mais discreto.

Clara Peeters - Natureza morta com queijo, pão, e vasilhas para bebida - 1615 - Mauritshuis - Haia

E foi mesmo assim. O caso excepcional e espetacular de Artemisia Gentileschi, lutando com seu gênio para se impor como pintora de grandes obras - grandes pelo formato e pelos temas religiosos ou históricos - em concorrência franca com os homens, donos do pedaço, é suficiente para demonstrar que, além de artista, a mulher tinha que ser heróica.


Mas no século XVIII abriu-se uma porta para elas. Humilde e pequena porta que permitia a entrada pela cozinha das artes.

É que, nesse período, e sobretudo na Holanda, o mercado das artes constituía-se no sentido de ampliar as vendas por intermediários. Quero dizer, junto ao processo por encomendas, negociado diretamente com o artista, havia agora lojas de quadros. Entre o colecionador - o consumidor - e o artista, surgia um intermediário.

Na Holanda próspera de então, uma classe média queria obras para suas casas. Não podiam ser imensas, como as destinadas aos palácios ou igrejas, e também era preferível que não representassem cenas épicas, dramáticas e eruditas. Era melhor imagens culturalmente calmas e neutras.

Nasceram assim a paisagem e a natureza morta, perfeitas para decorar uma sala de jantar ou de estar. Foi portanto, no século XVII que esses dois gêneros surgiram de modo autônomo. Dentro das hirarquias acadêmicas, situavam-se na parte mais inferior da escala, a natureza morta abaixo da paisagem.

Natureza morta com castanhas, guloseimas e flores - 1611 - Museu do Prado

Com esse gênero considerado inferior as mulheres conseguiram pintar como profissionais. Era o lugar concedido a elas. Naturezas mortas não necessitam de grande ateliê, são facilmente realizadas em casa. Apresentam também, pelo tema, algo de doméstico. E assim, Maria van Oosterwijck, Rachel Ruysch, na Holanda, e Louise Moillon, na França puderam, entre outras, mostrar um genio superior.

Entre essas artistas maiores está Clara Peeters. Que teve a particularidade de figurar sua própria imagem, algumas vezes, no reflexo de objetos luzidios que pintava. 


A sensibilidade da luz e das cores faz perpassar por tudo um sentimento de presença, de convicção material.


Natureza morta com queijos, alcachora e cerejas - 1625 circa - LACMA


Uma vez, mas não é seguro, ela fez um verdadeiro retrato de si mesma. Digo que não é seguro porque alguns especialistas debatem sobre a identidade do modelo. Mas é plausível que seja mesmo um autorretrato. Ela estaria presente numa Alegoria da vaidade. Jóias, moedas, artefatos preciosos são dispostos sobre a mesa. Uma bolha de sabão paira no ar: símbolo da frágil existência humana e de suas vãs paixões. Misteriosos - ou, pelo menos, não identificados -  são os objetos que ela segura: na esquerda, um relógio? caixa com uma concha dentro - mas qual o sentido disso? um estojo de maquiagem? na direita, um estilete? um pequeno pincel?


Alegoria da vaidade, provável autorretrato - 1618 - Col. Part.

Clara Peeters só começou a ser estudada de fato nos anos de 1970.

Comentários

  1. Interessante perceber neste último quadro a clara consequência da falta de acesso aos cursos de desenho de corpo humano, ao que elas eram proibidas ... Ela tem uma impressionante habilidade com os detalhes, perfeitos na natureza-morta, com os objetos, com a luz, mas se perdeu completamente nas proporções do corpo. Incrível!

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