A morte do jovem gênio

Géricault morreu com 32 anos, Vincenzo Bellini com 33, Mozart com 35, Rafael e van Gogh com 37. Lamentamos essas mortes precoces, mas somos felizes por termos as obras criadas por esses gênios. Em pouco tempo de vida, marcaram de forma universal a cultura.

Atribuído a DROUAIS Jean-Germain - Torso - 1775 circa - Museu de Narbonne

Mas quando um gênio morre aos 24 anos, antes de provar do que é capaz, a tragédia é maior.

Foi o que aconteceu com Jean-Germain Drouais. Ele tinha todos os dons. Era rico, bonito, causava forte impressão em todos os que conviviam com ele. Nasceu com o gênio da pintura e com espírito não conformista, contestando professores medíocres e regras burocráticas. Tinha espírito inquieto, nunca satisfeito consigo mesmo e com seus resultados.

Foi o aluno favorito de David. Viajou com seu mestre, Wicar e Debret para Roma em 1784. Auxiliou na  realização do Juramento dos Horácios, encarregado dos panejamentos.

É assim que o extraordinário desenho de Camille para os Horácios talvez não seja de David, mas do próprio Drouais.





Ao ganhar o Prix de Rome,  recebeu a bolsa  para o longo estágio na Academia de França em Roma.  Um estudo de anatomia que está no museu de Rouen é uma de suas obras romanas.




Não apenas a vida muscular é captada (energia no braço direito, repouso no esquerdo, tensão nas pernas), como o olhar para o alto, melancólico e perdido, confere uma surpreendente profundidade ao personagem. Os assessórios são sugestivos: a ponta da espada insinua a possível agressão, o grande capacete possui o aspecto de máscara sinistra e ameaçadora, que deve esconder a fragilidade da expressão.




Drouais, como bolsista, era obrigado a fazer envios a Paris para comprovar seus progressos. O primeiro deles  foi O atleta moribundo ou O romano ferido, que hoje está no museu do Louvre. É como se aquele primeiro Gladiador tivesse perdido o combate. O corpo está disposto em posição complexa: o torso avança, em postura retorcida, a mão direita oferece apoio e confirma a energia alerta do perfil, a esquerda pousa sobre a ferida na coxa. As pernas se juntam, os pés se cruzam, a espada deita-se sobre o pedestal, em repouso. Com poucos elementos, a composição é prodigiosa: um leque que vai da base ao carcás e ao enorme escudo. A curva do grande círculo reforça a sinuosidade do corpo, no eixo da estrutura e no contorno direito. Dos objetos emana presença forte e misteriosa.

Em 1776, Drouais seria obrigado a enviar a cópia de algum mestre. Ao invés disso, contra todas as ordens, ele decide fazer um quadro original. Vence a parada. Quando a tela chega a Paris, causa um choque: era mais radical do que os Horácios, de David.




O general romano Marius fora feito prisioneiro em Minturno, cidade ao norte de Nápoles. Foi condenado à morte, e um soldado devia executá-lo. Quando entra na cela, Marius estende seu braço para ele e lhe diz:: "Tens coragem de matar Marius"? Diante da autoridade moral que se desprende do prisioneiro, o soldado não ousa enfrentar o velho e foge.

Com seu Marius em Minturno, tela de proporções ambiciosas, 2,71 m. x  3,65 m., Drouais reduz o número de personagens em relação aos Horácios, evita o jogo balanceado dos grupos que David criara, dilata o vazio dramático do enfrentamento, acentua o claro-escuro, atribuindo a Marius uma luz que parece brotar sobrenaturalmente dele proprio. O jogo da composição em triângulos deixa de ser estático, como em David, para tornar-se poderosamente elástico.  Drouais atinge uma tensão em hipervoltagem que dificilmente poderia ser igualada.

Drouais trabalhava num quadro, Filoctetes em Lemnos. Terrível tema: Filoctetes, guerreiro grego, foi picado por uma cobra enviada pela deusa Hera. A mordida transformou-se numa ferida incurável, muito dolorosa e de repugnante fedor. Não suportando os gemidos e o cheiro, seus companheiros o deixaram abandonado na ilha de Lemnos. Filoctetes tinha consigo o arco e a flexa que herdara de Hércules. Eram sobrenaturais, nunca falhavam. Drouais imaginou-o tentando aliviar a dor por meio de uma asa de pássaro que lhe servia de abano.

Deixou um desenho admirável, em que o corpo se resolve num arco flexível.






Na versão definitiva (museu de Chartres), ele se serve de uma escultura antiga representando Homero como modelo para a cabeça; na velha Grécia, o pintor Parrásio teria pintado Filoctetes  com olhos secos de lágrimas, que exprimiam seu tremendo infortúnio. Assim, Drouais usa a imagem de um cego que se volta para nós, num sofrimento patético.




Mas eis que, em fevereiro de 1788, Drouais contrai a varíola, doença mortal na época. O diretor da Academia Francesa de Roma faz vir o médico do Papa, o melhor da Itália. O que não impede a morte do jovem pintor.

O choque foi tão grande que seus colegas se cotizaram para erigir-lhe um belo túmulo na igreja de Santa Maria in via Lata, Roma. Foi esculpido por seu amigo Michallon, também Prix de Rome. Wicar fez um grande desenho da sepultura e o ofereceu a David que o conservou consigo até o fim de sua vida. David erigiu em seu jardim um memorial a Drouais, monumento onde abrigou, dentro de um cofre de chumbo, as cartas do amado discípulo. Girodet escreveu versos sobre ele:

Sim! desditoso jovem, tu serás Rafael!
Esperança vã! Eterno desespero!
Não existes mais; teus rivais choram por ti como um irmão.



Michallon - Estudo em terra cota para o túmulo de Drouais - Museu de Lyon



Com o tempo, Drouais ficou esquecido. Apenas nos anos de 1970, quando o Museu do Louvre restaurou e exibiu seu Marius em Minturnos que seu gênio ressurgiu.




Comentários

  1. Malgrado a "exiguidade" do texto (por razões previsíveis...), a apresentação do desafortunado pintor e da sua obra merece forte aplauso porque nos fornece uma moldura muito exacta e sugestiva do génio do artista e dos cumes que poderia ter atingido. Obrigado.
    (J.P.Campaniço, escritor português)

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