Enigma na Pinacoteca

"Depois ela tirou do pedestal o espelho de prata, mirou-se nele e viu nele seu triunfo, seus olhos iluminados pelo orgulho, suas espáduas ornadas com os despojos dos deuses".


Pierre Louÿs é um autor meio esquecido em nossos dias. Mas seu sucesso já foi imenso. Suas obras tiveram considerável impacto sobre a cultura.

Três de suas Canções de Bilitis foram transformadas em música por Debussy - e mais tarde inspirariam um filme a David Hamilton sobre a beleza na puberdade. Seu romance A mulher e o fantoche conheceu várias adaptações para o cinema, incluindo duas muito ilustres, uma por Sternberg, intitulada The devil is a woman, com roteiro de John dos Passos e tendo Marlene Dietrich como estrela (1935, em português Mulher satânica), outra por Luis Buñuel, sob o título de Cet obscur objet du désir, com Carole Bouquet (1977, em português, Esse obscuro objeto do desejo).

Mas o que importa aqui é seu outro romance: Afrodite. Acima, sua capa de 1931, do importante ilustrador art-déco Philippe Ray, e abaixo, a capa plenamente belle-époque, de 1900, desenhada por Édouard Zier.


O romance foi inicialmente publicado em capítulos, como folhetim, com o título de A escravidão, no jornal simbolista Mercure de France, em 1895-96. Logo depois saiu num volume pela editora de mesmo nome, à qual o jornal estava associado. Seu enorme sucesso alavancou o Mercure de France, tanto o jornal quanto a editora. Esta adquiriria grande importância durante o século XX.

A celebridade de Afrodite foi tanta que Lalique criou, em 1931, uma tampa de radiador em cristal para carros sofisticados que figura a protagonista do romance: Chrysis. De joelhos, ela se dobra para trás e deixa a cabeleira celebrada por Pierre Louÿs ser levada pelo vento: é uma pose aerodinâmica.






Afrodite é um romance erótico, foi mesmo o grande romance erótico da belle-époque. Os ilustradores se multiplicaram, para levar o erotismo além da sugestão contida no texto, como Philippe Rey, na edição de 1931.




Ou Georges Villa que, em seus maravilhosos desenhos, não hesitou diante do escabroso (1938):




O tremendo sucesso levou o compositor Camille Erlanger - hoje bem esquecido (afora um solo sempre solicitado nos concursos para trompete) a compor uma ópera a partir do romance. Sua protagonista foi a grande Mary Garden, primeira Mélisande de Debussy.  Abaixo, ilustração de uma cena na estréia, em 1906.
 

Mary Garden no papel de Chrysis, da Afrodite de Erlanger:




Escarafunchando no Google, consegui descobrir uma velhíssima gravação do prelúdio para o quarto ato dessa ópera. Ele é concebido com solo para violino, fazendo pensar na "Meditação" da Thais, de Massenet. Uma pequena amostra que pede mais. Clique aqui para ouvi-lo: vale a pena: é um eco nostálgico  e esquecido da belle-époque. 

Afrodite, o romance, teve as honras de um espetáculo fenomenal em 1914. Transformada em peça de teatro por Pierre Frondaie, escritor e homem de teatro importante, amigo de Pierre Louÿs, ela teve música de cena e balés de Henry Février. As danças ficaram a cargo dos Baletts Russes, de Diaghilev, os figurinos foram desenhados por Paul Poirier:





Cora Laparcerie.com 39 anos, assumiu o papel de Crysis. Na foto, com o vestido de Poirier:



Cora Laparcerie, estrela e empresária do teatro, teve a idéia de pedir nem mais nem menos que a Auguste Rodin uma escultura de Afrodite - estátua que tem papel essencial na trama, sendo criação fictícia do personagem masculino principal, o escultor Démétrios - para o templo onde se passam algumas cenas. Rodin ampliou em gesso um estudo que já tinha feito, e sua Afrodite foi venerada no palco. Abaixo, uma fotografia reproduzida na revista Comoedia de um momento com a estátua de Rodin. Apesar da má qualidade, vê-se que o colar - objeto de maior importância - não foi pendurado no pescoço, mas nos braços erguidos. 




Em 2016, o Museu Rodin, de Paris, adquiriu a versão em bronze dessa escultura.  Rodin deve ter pedido ao modelo para que se pendurasse numa corda. Como resultado, o corpo se estira numa posição instável, contorcida.




Pierre Louys, em Afrodite, conta a história de uma cortesã de Alexandria, nos tempos helenísticos. Ela se chama Chrysis. É uma dessas heroínas fatais decadentistas. Sua beleza torna  Démétrios, o escultor, escravo do desejo que sente por ela. 

Chrysis exige que ele lhe ofereça três objetos: o espelho de prata de uma cortesã rival, o pente de marfim de uma sacerdotisa, e o colar de pérolas que orna a estátua da deusa em seu templo. Démétrios mata e comete os roubos sacrílegos. Chrysis mostra-se em público, nua, apenas com os três ornamentos, diante do imenso farol. Culpada de afronta à deusa, é condenada a beber cicuta. Démétrios tomará seu cadáver como modelo para criar uma estátua da Vida Imortal.

No ano seguinte à publicação do livro, em 1897, o escultor Joseph Carlier concebeu um grupo mostrando Chrysis e sua serva Djalah. Emprega mármore, ônix, um mosaico simulando tecido e dois acessórios em metal: o pente e o espelho. Sua escultura se intitula  O espelho, mas é também conhecida pelo nome da cortesã. Pertence ao museu de Cambrai, que a adquiriu em 1898.



E chegamos ao enigma da Pinacoteca. Uma estátua particularmente linda de seu acervo foi esculpida por André Laoust, artista da leveza e da elegância 

Aqui abaixo, dois exemplos de sua obra, antes de tratarmos da que está na Pinacoteca:  Ganai, cantor indiano (pequena versão de um bronze que ornava uma fonte em Lamalou-les-Bains, e que foi fundido durante a segunda guerra mundial):


e o expressivo Pierrot, cujo gesso está no museu da piscina de Roubaix (1889): 



A estátua da Pinacoteca traz um nome  em grego inscrito no pedestal: Chrysis. O pé se apoia sobre o cofre que continha os objetos. Ao lado dele, um leque de plumas.


Em torno de seu pescoço, as muitas voltas do colar de pérolas,  tal como descreve o romance:




Linda, graciosa, ela corresponde à cortesã de Pierre Louÿs. 




Ergue os braços, num gesto quase de dança. 

E aqui trago um testemunho pessoal. Afrodite foi o grande livro erótico de minha adolescência. Quando eu ia à Pinacoteca, nos velhos tempos de Tulio Mugnaini, meu coração se acelerava diante dessa Chrysis,  encarnação em pedra do romance que eu lia e relia. Lembro-me de ter visto nas suas mãos o pente e o espelho, em metal, como Carlier acrescentara à sua escultura. Duas décadas depois da cortesã de Carlier, Laoust retomou o mesmo princípio, concedendo o pente e o espelho à sua Chrysis. Mas, em algum momento de sua história na Pinacoteca, esses acessórios desapareceram.

Tal como está, o gesto é elegante, mas sem significação. Só a presença dos objetos ofereceria a compreensão de que ela se mira no espelho, ao mesmo tempo que põe o pente nos cabelos. 




Há outro ponto. A estátua foi realizada nos anos em que se preparava e se apresentava a peça Aphrodite que  Cora Laparcerie estrelou. Ora, é muito impressionante a semelhança entre o rosto da atriz e o da Chrysis que está na Pinacoteca. Laoust certamente se inspirou na beleza daquela parisiense que dava vida, no palco, à hetaíra de Pierre Louÿs. 


 

Mais  pesquisa traria a confirmação documental e precisa das circunstâncias em que a criação da obra ocorreu. 






Comentários

  1. Obrigada por desvendar este enigma
    Essa estatua sempre me intrigou também
    De sua aluna de ontem hoje é sempre
    MRF

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  2. Obrigada por desvendar este enigma
    Essa estatua sempre me intrigou também
    De sua aluna de ontem hoje é sempre
    MRF

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  3. Obrigada por desvendar este enigma
    Essa estatua sempre me intrigou também
    De sua aluna de ontem hoje é sempre
    MRF

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  4. Muito obrigada por toda essa pesquisa linda e compartilhar tudo isso! Eu fiquei encantada e muito intrigada com Chrysis na Pinacoteca, e amei saber tanto, principalmente agora que estou escrevendo um roteiro erótico para cinema. Foi verdadeiramente inspirador. Só ainda me restou a informação do que mais me chamou atenção logo que vi Crysis, o bracelete de cobra, que me lembrou a peça a alma imoral.

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