Chaves, Chapolin e o mal-estar

Cena do episódio do Chapolin Colorado, La Guerra de la Secesión, de 1974

Roberto Gomés Bolãnos era um escritor prolífico e criativo nos anos de 1950. Trabalhava sobretudo para a televisão mexicana, mas colaborava também com cinema e fazia as vezes de ator. Em 1968 começaram as transmissões independentes de televisão no México, e Roberto recebeu o convite para realizar um programa de meia hora. Este foi Los Supergenios de la mesa cuadrada, que permaneceu dois anos no ar e consistia num time de quatro comentaristas que satirizavam o formato de mesa-redonda, debatendo notícias reais do dia. Foram criadas outros esquetes de humor para rechear a atração, dentre elas El Chapulín Colorado e El Chavo, protótipos do que viria a ser os programas independentes do Chapolin Colorado e do Chaves, seus maiores sucessos.


Da esquerda à direita, Ingeniebrio Ramón Valdés Tirado Alanís (Valdés), a apresentadora (María Antonieta), Doutor Chapatín (Bolaños) e Professor Girafales (Aguirre)


El Chavo del Ocho foi produzido portanto de 1972 até 1980. Sua primeira exibição no Brasil ocorreu na antiga TVS do Silvio Santos, hoje SBT, em 1984. O sucesso de Chaves foi avassalador, criando um imaginário latino americano até hoje não comparado com qualquer outra obra (talvez a de Gabriel Garcia Marquéz, como bem apontou um amigo) e o canal nunca deixou de exibi-lo, assim como Chapolin Colorado. O grande problema, que eu consigo identificar a partir de meados dos anos 1990, é que a exibição do programa era feita de qualquer maneira: episódios fora da ordem de produção, com cortes, sem as aberturas nem os créditos finais, alguns nunca exibidos e outros reprisados à exaustão e sem um horário fixo na grade de programação, sendo usado explicitamente como um tapa buraco de programação, um curinga. E de nada valeu as mais de duas décadas de pedidos de respeito por parte dos fãs.



Foi então que no início de 2018 o canal Multishow anunciou que havia comprado todo o Chaves e Chapolin da Televisa, e iria fazer o que chamaram de “a exibição perfeita”. No dia 21 de maio foi exibido o primeiro programa, do que se mostraria a realização dos desejos dos fãs durante quase três décadas: os capítulos em ordem cronológica de produção, com indicação de data na tela, abertura e créditos finais mantidos. Alguns, nunca exibidos antes no Brasil, foram dublados pois só constavam no espanhol original. Estava tudo indo muito bem, emissora e fãs felizes.

Até que foi exibido o esquete “O descobrimento da tribo perdida”, uma aventura do Chapolin. Numa das cenas, a personagem de Maria Antonieta De Las Nieves diz que “era melhor ter chamado o Batman em vez do Chapolin”. Na resposta, Chapolin diz que o Batman não pôde ir ao local porque “o pneu do Batmóvel está furado”. Certo. Mas os fãs mais ardorosos notaram uma modificação. Na versão com dublagem original, lançada em dvd, o herói diz que o Batman não foi salvá-los “porque está em lua de mel com Robin”.


Aqui a piada original pode ser conferida em 10'05''

Aqui a versão em espanhol, que nos mostra que a piada é exatamente assim, em 19'25''

As críticas nas redes sociais e em fóruns de fãs foi impiedosa. Imediatamente as vozes mais reacionárias e conservadoras identificaram a atitude como censura por parte de um canal de tv composto por “apoiadores de gays e do politicamente correto”. A diretora de programação do canal, Tatiana Costa, comentou o caso: "Erramos nesse caso, mas ainda erraremos muito. E que bom, porque é vivo, é uma troca, não é uma decisão única, unilateral, enfiada goela abaixo. Estamos aqui para ouvir, discutir juntos e ajustar. Somos fãs também e sabemos que ainda teremos muitas batalhas pela frente. Existe, por trás, obviamente, um cunho homofóbico, uma coisa mais machista. Entendemos que era uma piada preconceituosa. Lá atrás, nos anos 70 e 80, era considerada normal, mas felizmente hoje não é mais aceitável. Você não diria isso para o seu filho, estamos em um outro momento da vida. Tentamos suavizar isso".

Interessante essa boa intenção do canal em suavizar um conteúdo de cunho homofóbico, já que os índices de mortes por homofobia no Brasil são altíssimos. Mas é honesto, mesmo que bem intencionado, modificar dessa forma o trabalho de alguém? Como o canal irá se comportar com a abundante gordofobia da série, violência contra crianças, outros tantos momentos machistas e racistas que faziam perfeitamente parte do contexto do humor dos anos de 1970?

Bolãnos era absolutamente genial, e também era um homem de seu tempo. Época muito diferente da nossa, evidentemente. Suas piadas são inocentes, ou são o horror absoluto que precisa ser combatido e riscado do mapa para todo o sempre? Proponho um passeio por outros casos semelhantes.

Em 2002, o diretor Steven Spielberg resolve modificar sua própria obra ao readaptar algumas cenas de seu filme ET - O Extraterrestre, lançado em 1982. O que mais chamou a atenção da crítica foi a substituição dos rifles dos policiais por walkie talkies, para – segundo o diretor – não chocar as crianças.



George Lucas também é conhecido por refazer diversas cenas de seus filmes, sobretudo a saga espacial Star Wars. Numa das mais controversas,Han Solo é acossado pelo caçador de recompensas Greedo, que ameaça sua vida. Na versão de 1977, Solo aponto sua arma por baixo da mesa e atira no mercenário, matando-o. Em 1997, Lucas muda a cena, fazendo com que Greedo atire primeiro, errando o alvo, e Solo atira em seguida. Em 2004 a cena foi novamente modificada para o lançamento em dvd, onde os tiros acontecem de forma quase simultânea, com Solo se esquivando.



Mas, nesses dois casos, trata-se de mudanças feitas por seus próprios autores. Bem diferente da que foi feita em Chapolin pelo Multishow, já que seu criador morreu em 2014. Algumas vezes não é uma modificação que ocorre, mas a própria supressão da obra. Foi o caso do lançamento do Blu-ray dos clássicos desenhos da dupla Tom & Jerry pela Warner, em 2013-2014. A produtora resolveu não lançar dois desenhos, “Mouse cleaning” de 1948 e “Casanova cat” de 1951, os dois contendo cenas de blackface. O curioso é que há outros episódios com esse tipo de representação, mas até onde pude apurar, somente esses dois foram eliminados das recentes edições de obras completas.

Mouse Cleaning

Casanova Cat

Os casos se multiplicam, e nosso espaço aqui é limitado. Vou terminar relembrando o caso do livro Caçadas de Pedrinho, escrito por Monteiro Lobato em 1933. No final de outubro de 2014, o Conselho Nacional de Educação publicou um parecer sugerindo a exclusão do livro das escolas públicas - sob a alegação de que a obra trazia conteúdo discriminatório. O trecho em questão seria esse: "Sim, era o único jeito – e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros". Uma ação foi apresentado no STF pelo Instituto de Advocacia Racial. A instituição alegou que o livro tem "estereótipos fortemente carregados de elementos racistas" e pediu que fossem adicionadas na obra notas “que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura”, tendo sido rejeitado pelo STF.


Mas se Lobato se tornou o bicho papão das criancinhas de uns anos pra cá, vale lembrar que em 2011, Huckleberry Finn, do americano Mark Twain foi republicado em edição modificada nos Estados Unidos, por chamar negros pelo termo pejorativo nigger. O termo aparece mais de 200 vezes ao longo da obra publicada em 1884. Após ser boicotado por escolas país afora, uma nova edição foi publicada por outra editora, com a palavra nigger substituída por slave.

Ilustração para o livro Adventures of Huckleberry Finn, por EW Kemble, para a primeira edição de 1884.

Melhor ir parando por aqui.

Espero que tenha ficado claro que as boas intenções do Multishow em modificar a obra artística de Bolãnos não é caso isolado. Retalhar, remendar, proibir, esconder, queimar. Os movimentos identitários avançam, mas no campo da cultura parecem não saber bem o que fazer com um certo tipo de arte que incomoda e causa mau estar.

Bem, estou terminando a leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Publicado em 1953, me parece mais atual que nunca.






Comentários

  1. Essa é uma questão essencial nos nossos dias. Corrigir a história, para o bem ou para o mal, é um problema grave. Apagamos do passado aquilo que não gostaríamos que tivesse existido. Desaparecem comportamentos pelo alçapão. Com isso, desaparece a discussão do que foi ontem, e do que deve ser hoje. É mais interessante descobrir de que maneira Lobato foi racista ele que, ao contrário dos modernistas, era fascinado pela cultura afro-brasileira, promovendo o Saci, em pesquisa e livro, reunindo histórias de derivação escrava em "Histórias de tia Nastácia". É ela, na Grécia Antiga, a única capaz de vencer o Minotauro. Quanto à piada do Batman: na série "Batman", dos anos de 1960, um subtexto cômico eram os ciúmes de Robin por Batman. Essa relação implícita era sabida por todos, e tornava-se engraçada quando alguém a mencionava. Isso ainda é verdade, porque o Batman de hoje perdeu, na grande maioria dos casos, o seu companheiro, para que não haja a menor suspeita sobre a virilidade do herói. Onde foi parar o Robin? foi vítima da homofobia. Tenho a sensação , ao ouvir hoje, quando gays conquistaram o direito ao casamento, "ele se atrasou porque está em lua-de-mel com o Robin", que há uma denúncia implícita, engraçada: não é preciso esconder mais, como vocês fazem, o amor dos dois. Continuo convencido de que toda censura é profundamente estúpida.

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  2. Abaixo a censura e o politicamente correto!

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    1. Sim, concordo. Mas nada de reclamar do Especial de Natal do PdF, onde Jesus é gay, certo?

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