Arte é sonho e isto não é metáfora.

Um traço fundador na natureza da arte é sua virtualidade. Funciona como um laboratório experimental da realidade. Como o sonho, é falsa, mas nos faz acreditar em sua verdade. Com isso, leva-nos e a entender melhor aquilo que chamamos de real e nos ajuda a conviver com ele. É, por assim dizer, um sonho desperto.

Luca Giordano: O sonho de Salomão. 1693

A arte e o sonho têm suas razões internas, os seus logos, que não são os mesmos da verdade. Suas verossimilhanças podem ser plausíveis, ou puramente interiores.


Peter Paul Rubens - Milagre de São Francisco de Paula - 1627


A arte é representação, no sentido de re-apresentação. Ela retoma o visível para revelar o invisível. Não é o redobramento da presença, mas uma re-apresentação a tal ponto renovada que se torna outra.  Ela se dá a nós feita com a matéria própria aos sonhos. Esse tecido de sonhos ora se torna um cachorro, um cavalo, uma floresta, ou o amarelo, o negro, o branco, o vermelho. 

Jackson Pollock - Convergência - 1952

“Last night I dreamt I went to Manderley again.” "Na noite passada eu sonhei que havia voltado a Manderley", diz a segunda Sra. de Winter, no filme Rebecca, de Hitchcock (1940). Sua voz é hipnótica, assim como o percurso sinuoso da câmera que abre o filme.

Hitchcock estava convencido de que o cinema era o modo mais perfeito de sonhar desperto.

Alfred Hitchcock - Fotograma de Rebecca - 1940

Os sonhos de Hitchcock são pesadelos. 

"(...) seres cujos originais desagradam à vista, nós gostamos de contemplar as imagens deles reproduzidas com a maior exatidão; por exemplo, as formas dos animais mais vis e dos cadáveres". (Aristóteles, Metafísica)

Hammer Film Productions Ltd., sobretudo em sua época de ouro, entre 1955 até os anos de 1970, foi uma produtora fenomenal de pesadelos. Terence Fischer e Freddie Francis, grandes mestres, estavam entre seus formidáveis diretores. Seus atores, encabeçados por Christopher Lee e Peter Cushing, não raro impunham-se nas telas com grandeza shakespeariana.

Tudo era feito com suprema elegância.


Terence Fisher - Horror of Dracula - 1958

Foi a Hammer quem firmou, em modo definitivo, o personagem de Dracula no imaginário coletivo contemporâneo.

A Hammer era inglesa. O horror romântico que ela criou prolongava uma forte tradição literária anglo-saxônica, cujo passado mais remoto está no teatro elisabetano, mas que tomou forma com os romances góticos, no final do século 18. Em língua inglesa, Ann Radcliff, Horace Walpole, Matthew Lewis, Mary Shelley, Poe, Hawthorne, Stoker, seus grandes autores prologaram o gênero até hoje, com poderosa colaboração do cinema.

Os filmes da Hammer exibiam colorido suntuos. Mas há uma joia em preto e branco: Taste of Fear (Grito de pavor - 1961), de um diretor bissexto, Seth Holt.

O filme não se passa num castelo dos Cárpatos durante o século 19. Nem recorre ao sobrenatural. É confinado numa mansão contemporânea da riviera francesa.


Tudo é inverossímil, e a inverossimilhança se acelera na medida que a história avança. As situações e os personagens - a jovem em cadeira de rodas, o chofer sexy, a madrasta inquietante de tão boazinha, o médico sinistro (Christopher Lee, num papel secundário, mas que declarou este ser o melhor filme jamais feito pela Hammer), o pai, que não cessa de reaparecer como cadáver - emergem dentro de uma tensão lenta. 



É sobretudo a fotografia e a iluminação que transfiguram tudo, capturando o espectador para inseri-lo na fantasia enlouquecida.



Um amigo associou, com razão, as imagens do filme ao clima do fumetto Diabolik.





Seth Holt devia realizar o filme Danger : Diabolik !, de 1968, que finalmente coube a Mario Bava.

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