Faces da peste


No imaginário das pragas, há sempre um misto de real com sobrenatural, às vezes de seriedade com burla.


A arte o prova. Quantos Bosch, quantos Bruegel seriam, a despeito de um surrealismo “avant la lettre”, tão fieis com o que se passava na Terra? Tão graves, tão dramáticos e, ao mesmo tempo, tão caricaturais?


Na história das epidemias, uma figura específica pode ter cumprido papel relevante no alerta às populações.


Reconhecível pelo uso de uma máscara com longo receptáculo, no qual se punham substâncias para filtrar o ar, encarnou, desde o século 16, um especialista muito concorrido pelas cidades europeias: o médico da peste.


Foi em 1619 que esse profissional ganhou traje completo; além da máscara, casaco, chapéu e luvas, tudo em couro. Conformou, desse modo, um ser extravagante, meio sacerdote meio cientista. Seu bastão servia para examinar os pacientes, para manter uma distância segura e indicar os medicamentos corretos, bem como, se pedissem, para açoitá-los em punição aos pecados.


A roupa parece ter sido invenção de Charles de Lorme, amigo de Richelieu e médico de Luís XIII. Nasceu em meio às Luzes, mas seu aspecto logo deu motivo satírico aos artistas.


Na reprodução acima, de 1656, nem o semblante ou o gestual serenos da figura, nem o fundo anódino e o texto elucidando a imagem (descreve os materiais e a finalidade das vestes) tranquilizam, de forma integral, quem a observa. O antropomorfismo une humanidade e natureza, racionalidade e irracionalidade, fazendo-nos ver não tanto um ser humano fantasiado quanto, principalmente, uma entidade híbrida e mágica.


Intitulada Doctor Schnabel von Rom (Doutor Bico, de Roma), outra gravura acentua o ar inquietante da que lhe antecede. Deve-se em parte às garras mais nosferáticas e ao acréscimo, no bastão, de uma ampulheta ladeada por membros quirópteros. Os paralelos alegóricos com a morte, aqui, são maiores. Além disso, as crianças escapando ao monstro, bicho-papão ou portador de maus presságios, no canto inferior esquerdo da gravura, a torna ainda mais assustadora.


na estampa, por outro lado, rimas com sentido diverso: “Vos Creditis, als eine Fabel, quod scribitur vom Doctor Schnabel, der fugit die contagion et autert feinen lohn darvon...” O texto, macarrônico, mistura de latim e alemão, diz mais ou menos: “Crê que seja fábula o que há escrito sobre o Doutor Bico, que foge do contágio e dele tira o salário...” O tom, como se percebe, é cômico. Outras gravuras o reiteram. A de Johann Melchior Füssli, abaixo, explora a personagem em semelhante viés jocoso.


Máscaras do Carnaval de Veneza, em cores e formas variadasmultiplicam nas multidões a personagem da commedia dell’arte, “Medico della Peste”...


... engraçadas, mas também aterradoras.



Imagens:
1. Apoiadores do presidente Bolsonaro vestindo roupas com a bandeira do Brasil, rezam em frente ao Palácio da Alvorada, em meio à pandemia de Covid-19 (abril de 2020). Foto: Adriano Machado / Reuters.
2. Detalhe de O Triunfo da Morte (1562), de Pieter Bruegel, o Velho, pintura a óleo do Museo del Prado, Madrid.
3. Capuz com máscara do século 16 ou 17, pertencente ao Deutsches Historisches Museum, de Berlin.
4. Do Tratado sobre a Peste (1721), de Jean-Jacques Manget, no qual se lê: “Hábito dos Médicos e outras pessoas que visitam os empesteados, feito de couro marroquino, máscara com olhos de cristal e um longo nariz cheio de perfumes.”
5. Retrato de Charles De Lorme, feito por Jacques Callot em 1630.
6. Gravura de Gerhart Altzenbach, 1656, representando um médico da peste vindo de Roma, em trajes de ofício.
7 e 8. Gravura de Paul Fürst, 1656.
9. Gravura de Johann Melchior Füssli, 1721.
10. Máscaras do Carnaval de Veneza representando o Médico da Peste.
11. Cristãos intercedem pelo fim do coronavírus (abril de 2020). Fotógrafo desconhecido.

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