Como estudar e não esquecer

A memória é estranha, e nem sempre fácil de controlar.

Salvador Dalí. A persistência da memória. 1931

Agatha Christie conta em suas memórias que a família a levou para ver a coroação do rei Eduardo VII, em 1901. Ela não se lembra nada do desfile suntuoso: ficou nela apenas a imagem da torta servida no jantar especial que a família preparou para a comemoração.


Edwin Austin Abbey - A coroação de Eduardo VII - 1902


Não sei de receitas para aprender, nem boa memória, por sinal. Tento descrever como funciona para mim.

Tenho inveja de pessoas com memória fenomenal. Alexandre Eulálio e Antonio Candido eram assim. Nomes, datas, referências bibliográficas na ponta da língua. Creio que isso é um dos traços próprios do verdadeiro, do grande, erudito.



Caderno de anotações de Alexandre Eulalio



Minha memória é imprecisa. De modo vago me recordo, por exemplo, que em tal livro deve haver um argumento interessante para alguma coisa que preciso. De hábito, sublinho as passagens, e quando vou procurar, elas estão lá. Anotações, não adiantam. A primeira coisa que acontece é perder o que anotei, ou esquecer completamente até mesmo que fiz as anotações. Tenho enorme dificuldades com números e datas. Sei que tal ou qual autor nasceu, ou morreu, numa década, mas não me arriscaria nunca a dizer com precisão o ano. Por sinal, faço enorme confusão em minha agenda, e não raro marco meus compromissos de modo errado. Tenho, constantemente, que verificar tudo, e a era da internet significou um alívio enorme para mim.



Mnemosine, a mãe das musas, por Frederic Leighton - 



Sei apenas de uma coisa. Só aprendo quando não tenho consciência de estar aprendendo. Quando estava no ginásio, péssimo em matemática, passei noites decorando teoremas para as provas. Quando estudava arqueologia na Provença, tive que decorar os nomes correspondentes à tipologia dos vasos gregos, uns 25. O professor ia cobrar no exame oral. Colei um papel com os nomes e as formas na parede, ao lado do chuveiro, e toda vez que ia tomar banho, recitava para gravar. Aprendi todos. Hoje, deles, só me restam a ânfora, a hídria, a cratera, o cântaro, e o rhyton, ou ritão. Isso porque eu já conhecia esses nomes antes! Dos teoremas, não sobrou nada.


Rhyton de Trieste - Fim do séc. 5, início do séc. IV a. C.

Nos anos de 1980, o grande historiador francês Marc Ferro ofereceu uma palestra na Unicamp. Contou um episódio: teve que dar um curso sobre o reino de Luís XIII. Passou o ano preparando cada aula do modo o mais completo e consciencioso. Um ano depois, havia esquecido tudo, e só lhe ficara o conhecimento daquele reinado apenas o que a leitura de Os três mosqueteiros, cuja precisão histórica é prodigiosa, lhe dera muito antes.


Gustave Doré - D'Artagnan - 1880

Na minha memória, só permanece o que descubro com interesse e com paixão. Se não houver isso, o registro se vai. Quantos livros não tenho na estante, assinalados, riscados, e que, portanto, li com cuidado, e dos quais nem me lembro da existência? 

Assim, fiquei feliz ao assistir A volta da 36ª câmara, filme de Liu Chia-liang, estrelado por Gordon Liu (1980). Foi realizado na esteira do sucesso que A 36ª Câmara de Shaolin - do mesmo diretor e com o mesmo ator - desencadeara, e que comentei neste blog.



É um filme muito inteligente. Primeiro, porque não se trata de uma sequência. Segundo, porque é uma paródia hilariante. Terceiro, porque o ator principal não encarna o monge San Te, herói solene e invencível de Kung Fu, como fizera no precedente, mas é um malandro que se faz passar por ele, fingindo ser imbatível nas lutas, o que leva a desastres muito engraçados.






O malandro tem coração social sensível, e se comove com a situação muito dura dos operários que trabalham numa tinturaria. São oprimidos por um bando de mandchus fortíssimos nas lutas. Decide então ir para o templo de Shaolin para aprender os segredos do kung fu e assim poder ajudá-los. 




O acesso é proibido, mas ele trapaceia. Lá dentro, o monge San Te, que comanda a 36º câmera, se recusa a ensinar-lhe kung fu. Mas o obriga a construir andaimes para a restauração do templo. É uma técnica chinesa empregada até hoje nas construções: estruturas de bambu amarradas.





Passa três anos lá. Só ao sair descobre que se tornou um exímio lutador de kung fu porque, ao se exercitar nos amarrios, observava os exercícios no pátio, e intuiu, associando os gestos da construção e os da luta, como proceder.




Ele criou o seu próprio modo de lutar, o kung fu-andaime (é chamado assim no filme), que emprega, com sucesso, contra o kung fu-banquinho dos mandchus (kung fu-banquinho fui eu que inventei, porque, de fato, eles lutam, muito a sério,  com banquinhos!)




Acho que o meu tipo de aprendizado é meio assim. Preciso intuir e metabolizar, para que a memória fique arraigada em mim. Por isso, consegui aprender algumas línguas, menos pelas lições escolares do que por práticas diferentes, sobretudo leitura e filmes. Por isso, as coisas que sei não são muitas, mas estão firmes, dentro de mim.

Agora, quando me perguntarem qual é minha "metodologia" - palavra horrível - vou responder que é inspirada no kung fu-andaime.


Comentários

  1. ler seus textos aqui no blog Coli é como fazer uma pausa da constante avalanche de informações das redes sociais para tomar um café e olha o que se passa pela janela

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