Mulheres maduras e jovens amantes

Na história da arte, o tema do velho interessado por jovenzinhas é bem frequente. Um núcleo iconográfico se concentra na cena de Suzana e os velhos. Resultou numa fieira de quadros admiráveis, entre eles várias obras-primas.



Tintoretto - Suzana e os velhos - 1555/56


A Bíblia fornece também a versão incestuosa dessa relação, com a história de Lot e suas filhas.


Artemisia Gentileschi - Lot e suas filhas - 1635/38


Fora das referências bíblicas, a cena do ancião que quer corromper a mocinha para obter seus favores é tema comum no norte da Europa. A lição de moral dessas imagens é pretexto para situações cômicas.

Quentin Matsys - Os amantes mal assortidos - 1620 circa

Cranach tomou essa situação como um de seus cavalos de batalha.

Lucas Cranach, o Velho - Os amantes mal assortidos - 1522

Vincenzo Campi, pintor lombardo, de cultura flamenga,  foi um daqueles que levaram esse tema para a Itália.


Vincenzo Campi - O casal mal assortido - fim. séx XVI

No quadro de Campi, a moça faz o sinal de esconjuro com a mão esquerda, enquanto aceita o dinheiro com a direita.

No quadro de Hans Christian Schurer, (1606/1612), o sinal cúmplice com o espectador é o da figa, com o mesmo sentido.




Iconografia aparentada é o da mulher entre duas idades, que foi brilhantemente estudada por Jacques Bonnet (veja aqui).



A moça está disposta entre o velho e o jovem. Mas não hesita.

Anônimo - França - A mulher entre  as duas idades - séc XVI - versão de Rennes

Anônimo - França - A mulher entre duas idades - séc. 16, versão de Aix-en-Provence

Ela aceita seu jovem amante apertando-lhe o mindinho e dispensa o velho, entregando-lhe os óculos, para que veja melhor. Na versão de Rennes, o velho lembra pelo gesto a penetração.

No entanto, no sentido contrário - quero dizer, a velha que seduz o jovem - a relação é muito mais rara no campo da pintura. Mais uma vez, é na cultura setentrional que surgem os exemplos. Entre eles, um extraordinário quadro do MASP.


Quentin Metsys (?) - O casamento desigual - 1525 - 1530 - Este quadro, cujas caras simiescas foram inspiradas pelas caricaturas de Leonardo, inverte o padrão velho - moça. Os rostos são tão ambíguos na dupla central, que é preciso prestar atenção nas roupas para nos certificarmos  que se trata de uma velha e de um jovem, e não do inverso. 


A associação do rapaz e da idosa produz um equívoco em certas telas, porque a velha pode surgir apenas como a agente de uma intriga, a mediadora para que o rapaz obtenha a mulher cobiçada. 

Quando o objeto do desejo masculino forma um triângulo homem - moça - velha, o papel desta última não faz dúvida. Ela é a entremetteuse, a matchmaker.


Jan Gerritsz Van Bronchorst - L'entremetteuse - 1636/38 - Neste quadro, a velha serve apenas para unir o casal.

Na obra abaixo, porém, de Michael Sweerts, que o Louvre intitula L'entremetteuse (1660), paira a incerteza: ela está agindo por conta própria, ou de outrem? Quem percebe a expressão de desejo no rosto da velha, escolhe a primeira possibilidade. Quem a interpreta como avidez por dinheiro, escolhe a segunda.




Completada pelo jogo dos gestos, uma obra como esta, anônima, alemã, do século XVI, deixa claro o sentido:



Ou como nesta, atribuída a Cranach, o Velho: é a mulher idosa que compra o rapaz.




Também são bem evidentes as razões pelas quais o jovem na imagem abaixo abraça a senhora:

Joannes de Cordua - O casal mal-assortido. Segunda metade do século XVIII. A obra é parte de um díptico.  

Cranach,  pintou um outro tipo de triângulo, diverso do que assinalei acima. Nele, o gigolô aceita, com ar blasé, o dinheiro que lhe é oferecido, enquanto uma jovem criada sublinha, por sua presença, o contraste da mocidade e da velhice.



E, num notável quadro de Hendrik Goltzius (final do século XVI), o desejo feminino é exposto graças à nudez do rapaz. Ele aceita os presentes, mas afasta, com a outra mão, a aproximação da velha.



***

Se a atração física da velhice pela juventude está assinalada na cultura visual norte-europeia, o numero de idosas atraídas por jovens é bem menor do que o das mocinhas tentadas pelos velhotes.

Ao contrário, o cinema é bastante pródigo em caracterizar mulheres maduras que tomam gigolôs por amantes.  A referência com primazia sobre todas é Sunset Bvd., de Billy Wilder (1950), em que a velha estrela do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson, então com 51 anos),  sustenta um roteirista raté (William Holden, que tinha então 31 anos).




Paul Morrissey dirigiu, com produção de Andy Warhol, um remake paródico de Sunset Boulevard intitulado Heat (1972).  Ele faz parte da trilogia criada pelo mesmo diretor: Flesh, Trash, Heat. Joe d'Alessandro, ator de grande beleza e prodigiosa indiferença, impõe sua imagem na tela com uma presença que o transformou em ídolo underground.

Estrelava ao lado de Sylvia Miles (que fora indicada para o Oscar no notável Midnight Cowboy, de Schlesinger, 1969, outro filme com história de gigolô para mulheres maduras). Ao invés do célebre e melodramático "All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up." de Norma Desmond, a última fala de Sylvia Miles, no papel da velha atriz Sally de Heat,  é "Shit!", dita quando seu revólver falha na beira da piscina.




A indiferença de Joe Dalessandro é como que ontológica. Ele vai para onde o levam, faz o que lhe pedem. É diverso do gigolô que explora conscientemente a paixão e o desejo de outrem, e cuja indiferença nasce da estratégia: aqui, o caso exemplar é Le bel indifférent, monólogo que Jean Cocteau escreveu para Edith Piaf em 1940.




Depois do enorme sucesso de Sunset Boulevard (11 nomeações para o Oscar e três vencidos), o tema proliferou, como no excelente filme de Aldrich, de 1956:




Não vou fazer uma lista aqui de todos os filmes com este tema: há muitos! Se algum leitor existir e quiser lembrar algum, ficaria feliz se inserisse no campo das mensagens.

Quero apenas assinalar quatro, meus favoritos. Não são muito conhecidos, mas são maravilhosos.

Primeiríssimo, que descobri recentemente: Connecting rooms, único longa metragem do diretor  Franklin Gollings. Data de 1970. É uma produção inglesa, apesar de ter Betty Davis como estrela.


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O modo de filmar é cuidadoso, e o tratamento do enredo, muito delicado.  Davis tinha 62, e Alex Kanner, o garoto da história, 28. Kanner não é exatamente bonito, nem sensual. Mas seu personagem seduz pela habilidade oportunista, emanada da energia que lhe oferece o desejo pelo sucesso. Os sentimentos de Wanda Fleming, a velha violoncelista, por ele passam pela ternura e pelo prazer de ser amada. Os equívocos, enganos, vão se sucedendo e se resolvendo com suavidade. 

Segundo: Sudden fear (Precipícios d'alma), de 1952, dirigido por David Miller (ele fez também um dos filmes de meu coração, Midnight Lace, 1960, que, por uma vez, ganhou um belo título no Brasil: Teia de renda negra).

Joan Crawford (ela teria 48 anos no momento da filmagem, embora a grande jararaca nunca revelasse a verdadeira data de seu nascimento) contracenava com Jack Palance (32 anos na época da filmagem). Palance tinha um rosto poderoso ( "I know I'm no beauty, but these are the Estonian features I was born with.", ele disse uma vez), e bastava seu físico para tornar um personagem inquietante.

No início de  Sudden fear,  Palance é rejeitado para um papel de sedutor no teatro por não ser suficientemente bonito. Sua resposta, colérica, é:  "Miss Hudson, em sua cidade natal de São Francisco, há uma galeria de arte na Legião de Honra, na qual existe uma pintura a óleo de Casanova. É bastante óbvio que a senhora nunca viu essa pintura. Para sua informação, Srta. Hudson, Casanova era assim: tinha orelhas grandes, uma cicatriz no olho, um nariz quebrado e uma verruga no queixo, bem aqui. Sugiro, senhorita Hudson, que quando voltar para São Francisco, visite essa galeria e veja esta pintura!"




Sudden fear tem a força da cinematografia feita pela imagem, na sua essência. A ela adere a sutileza na insinuação silenciosa das intenções e comportamentos.



Os outros dois filmes que quero mencionar, são franceses, e de diretores desdenhados pelos bem-pensantes, pela vanguarda, pelos Cahiers

André Cayatte foi um diretor empenhado nas questões de injustiça social. Em 1970,  fez um filme sobre um fato real, ocorrido no ano anterior.

Gabrielle Russier, de 30 anos, professora de literatura num liceu de Marselha e um de seus alunos, se apaixonaram. O rapaz tinha de 16 para 17 anos.

O verdadeiro Christian Rossi, amado por Gabrielle Russier. Hoje ele é quadrinista.


Divorciada, criando dois filhos pequenos, Gabrielle Russier é denunciada pelos pais do aluno por corrupção de menores. Esses pais, próximos dos comunistas, são professores na universidade de Aix-en-Provence. Conservadores, detestam tudo o que cheire a liberdades esquerdistas naqueles tempos de pós-68. Gabrielle Russier é condenada a uma multa pequena, 500 francos, e a um ano de prisão, que pode cumprir como probatório, livremente, portanto.

A universidade pressiona para um novo julgamento, por motivo de pena leve demais. Pouco antes da primeira audiência desse segundo processo, Gabrielle Russier se suicida.

Estes acontecimentos ocorreram no momento em que eu chegava para estudar em Aix-en-Provence. Presenciei a grande comoção pública e a injustiça flagrante. Petições foram feitas, o presidente de então, Georges Pompidou, foi interpelado. 

André Cayatte começou a filmar logo em seguida ao acontecimento. Foi criticado como oportunista, mas era a ocasião para denunciar a máquina judiciária, os comportamentos arcaicos. Inscreveu-se numa luta contra a opressão dos costumes e da lei.

Mourir d'aimer (Morrer de amor) teve um enorme sucesso de público. Fez chorar a França inteira. Comovido, Charles Aznavour compôs uma canção inspirada no filme. 

Mourir d'aimer é, de fato, forte. Cayatte não era um cineasta de filigranas: sempre foi direto ao ponto, sublinhando o que quer dizer. Admirável Annie Girardot, sua atriz para o papel de Gabrielle Russier.






Enfim, Chère Louise (No Brasil, Louise - Uma mulher sem medo de amar), de 1972. Seu diretor, Philippe de Broca, dirigiu-se sempre ao cinema de sucesso. Razão a mais para ser desprezado pela crítica cabeça.

Chère Louise é a história de amor entre uma professora de artes na província e um imigrante italiano. Ela tem pouco mais de quarenta anos, é divorciada. Ele, com 25, não tem emprego. Jeanne Moreau confronta o jovem Julien Negulesco. 

Jeanne Moreau, envelhecendo, solitária, vulnerável, recolhe esse rapaz em casa. Ele tem a crueldade, a inconsciência própria à juventude.



Tudo se tinge de melancolia fina. O sentimentalismo é afastado. 

Broca não gostava muito desse filme, ao que parece. Ele é singular em sua filmografia repleta de ação, mesmo em suas comédias. Quando apresentado em Cannes, foi vaiado. 






Comentários

  1. Jeanine Toledo: Jorge, lembrei imediatamente de filmes mais recentes: A Professora de Piano, 2001- Michael Haneke e O Leitor, 2008 - Stephen Daldry.

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  2. Caro professor, peço licença para mencionar duas histórias de amor reais que podem ser acrescentadas às lindas obras e aos belos filmes que você tão bem descreveu: a de Ana, esposa de Euclides da Cunha, e Dilermando, e a de Chiquinha Gonzaga e o jovem João Batista. Adorei o seu texto! Belo e tão rico de informações! ��

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  3. Sei desses dois filmes: "Diário de um velho louco" (primeira versão em 1962, com direção de Keigo Kimura, e outra versão em 1987, com direção de Lili Rademakers).

    Não consegui ainda uma cópia em bom estado de nenhuma dessas versões. Li, porém, o livro homônimo do Junichiro Tanizaki, obra prima do mestre, na qual foram inspiradas as duas versões.

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  4. Existem também duas narrativas mais novas, com temáticas um pouco diferentes: retrataram um descobrimento do mais jovem com o mais velho: Me Chame Pelo seu Nome (2018, Luca Guadagnino) e Loving Anabelle (2006, Katherine Brooks)

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    1. É verdade. Loving Anabelle eu não conheço, mas vou procurar. Abraço

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