Um corpo à ameaça microscópica



Poucos duvidam do poder emanado pelas imagens. Ao longo de nossa história elas ocuparam (e ainda ocupam) uma posição privilegiada, de maneira que é difícil imaginar um mundo sem elas. As imagens permeiam o nosso cotidiano e nossa mente. São objetos de culto, desejo, de ódio; servem como testemunhos, influenciam nossas decisões, criam mundos, nos permitem sonhar...

A importância que as imagens ocupam em nossas vidas também pode ser provada por nossa ânsia em dar forma àquilo que acreditamos, mas não somos capazes de ver: anjos, deuses, monstros e demônios estão por toda a parte, dos mapas antigos aos vitrais das igrejas modernas. Mas o desejo por dar forma ao invisível também atinge coisas não tão imateriais como os casos anteriores – a doença e a morte são exemplos. Do ponto de vista de sua função, a origem dessas imagens – sagradas ou profanas – não são muito distintas. Materializadas diante de nossos olhos, elas permitem a mentalização e a imaginação a partir de sentidos comuns, compartilhados. Efetivam-se como linguagem.

Giovanni da Paolo: Allegoria della peste, séc. XV. Museu Dahlem, Berlim.
Arnold Böcklin: Die Pest, 1898. Kunstmuseum Basel, Basiléia.

O passado criou imagens poderosas para dar corpo às Pestes, tornando-as visíveis e imagináveis. Por vezes, elas se confundem com a imagem da própria Morte, figura humana, mas esquelética, a lembrar-nos incessantemente o que restará de nós no futuro; portadora de uma gadanha (espécie de foice), que lhe serve de arma para ceifar as vidas. A associação entre Morte e Peste é um tanto óbvia, e recorda a letalidade das poderosas doenças que dizimaram milhões no passado. 

Na Allegoria della Peste de Giovanni da Paolo, do século XV, a Peste, toda de preto, entra na cena a cavalo. Traz na cintura a gadanha, tal como as representações da Morte, mas derruba as pessoas com suas flechas envenenadas. Já em Die Pest (1898), de Arnold Böcklin, a figura esquelética, também de preto, ceifa as vidas em seu caminho montada sobre uma besta dracônica. Curiosamente, essas figuras evocam, para os de minha geração, outros vilões de nosso imaginário, esses bem fictícios, como o Vingador, da animação Caverna do Dragão, e os Nazgûl da trilogia cinematográfica O Senhor dos Anéis. A cultura, ao que parece, também segue, mais ou menos, as leis de Lavoisier para a natureza: “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Retornarei a essa questão logo a seguir.

Cena da animação Caverna do Dragão (Dungeons & Dragons), 1983-85.
Cena do filme O Senhor dos Anéis: As Duas Torres (Lord of the Rings: The Two Fortresses), 2003. 

Durante a epidemia de gripe espanhola no Brasil, no ocaso de 1918, imagens da moderna peste surgiram em jornais e revistas, fruto da criatividade de nossos caricaturistas. Na capa da Revista D. Quixote de fins de outubro, Julião Machado apresentou aos leitores uma cadavérica Influenza hespanhola, que evoca o imaginário tradicional da figura da Morte já aqui apresentado. 

Julião Machado: capa da Revista D. Quixote, n. 76, out. 1918.

Não era, é claro, a primeira vez que essa associação era feita na imprensa, como atesta a ilustração de Angelo Agostini, também caricaturista, sobre a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro em 1876.

Angelo Agostini: O carnaval de 1876. Revista Illustrada, n. 10, mar. 1876.

No entanto, ao contrário das vestes negras e a gadanha da Febre Amarela de Agostini, a Influenza de Julião Machado usa trajes típicos espanhóis e castanholas nas mãos. Ela também é como a Morte, mas agora tem um passaporte, ganhara costumes e uma nação para si (hoje sabemos que o início da doença não começou na Espanha, porém o nome ficou). Nada mais propício para essa atribuição de identidade do que os tempos de nacionalismo exacerbado do início do século, que em 1918 finalmente via o desfecho de uma Grande Guerra fruto desses “ideais” – e que em grande medida fora a responsável pela dimensão da gripe, que se alastrou junto à movimentação dos exércitos. 

Julião Machado faz referência à relação entre a guerra e a peste na imagem sob uma chave discreta. A “kultur microbians” injetada na perna da espanhola dá insumos ao boato (totalmente falso) de que a doença teria sido “made in Germany”, que por sua vez encontrara na Espanha um “bode expiatório” para disseminar a doença e virar a guerra.  A coroa sobre a cabeça da Morte/Peste, afinal, recorda que não importa quem ganhe as batalhas nos campos: ela é a verdadeira vitoriosa, a única rainha. E com isso, o caricaturista deixava um recado sensível aos leitores, exprimindo a dificuldade de fazer o que deveria fazer em tempos tão dolorosos: “Sem a menor vontade de rir, nem de fazer rir”. 

Calixto Cordeiro: A cidade de Wenceslau. Gazeta de Notícias, n. 298, out. 1918.
Dias depois daquela edição da D. Quixote, o jornal Gazeta de Notícias trazia na capa uma enorme ilustração de Calixto Cordeiro: A cidade de Wenceslau. Um mar de pessoas empilhadas, mortas e vivas, entre caixões, domina a cena, digna de um dos círculos do Inferno de Dante. Ela representa o caos da cidade do Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil e governada pelo presidente Vencelau Brás, que segundo a imprensa pouco fazia para combater a gripe, mas anunciava que ela já estava em declínio. À direita, um grupo se distingue dos demais enquanto disputa por algo pouco identificável – talvez um pedaço de pão, considerando o desabastecimento de gêneros alimentícios que a cidade sofreu, matando os habitantes mais pobres de fome, quando não da peste. Eles disputam por sua sobrevivência, evocando vagamente a famosa composição de Géricault em A balsa da Medusa (1819), onde os náufragos se unem em um último suspiro de energias para um pedido de resgate ao navio no horizonte.

Théodore Géricault: A balsa da Medusa, 1819. Museu do Louvre, Paris.

Ao fundo da ilustração de Calixto, eis a figura da Peste, por entre nuvens fétidas e contagiosas que evaporam de si, contaminando os habitantes. Ela é um esqueleto portador da gadanha da morte, montado sobre uma besta mamífera sedenta por devorar os corpos à sua frente. Na mesma página do jornal, as manchetes das notícias eram trágicas: “A vida por um fio”, “O descalabro da Saúde Pública”, “A caminho da fome!”, “Desinfecção!”. A Gazeta estimava mais de quinhentas mortes na cidade, só no dia anterior.

Hernani de Irajá: A Peste. Reproduzido na Revista da Semana, n. 39, nov. 1918.

Tão sedenta quanto a fera criada por Calixto é a Peste do desconhecido pintor Hernani de Irajá, reproduzida na Revista da Semana nos princípios de novembro de 1918. A imagem que temos de A Peste é péssima, mas seu paradeiro é desconhecido, dificultando melhor visualidade. Do que é possível observar, trata-se de uma representação distinta da epidemia: um ser humano, gigante e transformado, uma versão feminina do monstro de Frankenstein, um zumbi avant la lettre. Aquele corpo de carne e osso, em pose e face animalescas, avança como o cachorro de Calixto por sobre suas presas fáceis, a humanidade, nua, desprecavida, entre poses contorcidas que assinalam o seu desespero. 

A imagem da Peste de Hernarni de Irajá suscita outro repertório iconográfico, muito próprio das experiências culturais da Europa finissecular. Sua materialização não se incorpora à Morte tal como era representada (apesar de se associar a ela), e sim a uma nova e misteriosa imagem da Mulher, poderosa, instintiva e sedutora; que faz dos homens seus joguetes amorosos e os destrói em seguida; tantas vezes representada nas Dalilas, Judites e Salomés do Antigo Testamento, famosas femmes fatales cortadoras de cabeças. Ou em Elle (1906), de Gustav-Adolf Mossa. A Peste de Hernani de Irajá não é bela e sedutora, claro, pois encarna a doença, mas ela também é uma devoradora de homens. O autor, que também se interessava pela Sexologia, publicou em 1918 o livro Psychoses do amôr. Segundo ele, realizara um “estudo das perversões do instinto sexual, das anomalias do amor” (1). Embora desconheça o conteúdo do livro, é difícil não imaginar as relações entre ele, a cultura europeia da virada do século, as teorias sexuais de Freud e a pintura. Sua Peste parece somatizar todas essas referências, convertendo-se em uma “perversão” sexual feminina digna da psicanálise.

Gustav-Adolf Mossa: Elle, 1906. Musée des Beaux-Arts de Nice.

As imagens que vimos até aqui foram todas criadas pela criatividade e repertório cultural de artistas. Elas contêm, como bem disse Alex Miyoshi, um “misto de real com sobrenatural”, e também um misto de passado e presente. A ciência moderna também se constituiu como um tipo de conhecimento que preza pelas imagens, através da observação detida do mundo natural. Não há melhores instrumentos que representam isso do que os tele- e microscópios. Mas o desejo pela verdade do mundo, hoje dominante em nossa sociedade, extirpou-nos daquelas imagens criativas e fantasiosas que por milênios criamos para dar materialidade ao que sentimos, mas não enxergamos. Foram substituídas pelo desejo de dar uma aparência concreta a tudo.

Fabrice Erre: Demain. Publicado em Le Monde, 10 mai. 2020. Disponível online.

No caso das doenças, ao mesmo tempo em que a ciência, a partir da identificação dos agentes causadores, nos trouxe os remédios para a nossa salvação, pôs em crise – por seu desejo de verdade – aquelas representações alegóricas, mas vívidas e horripilantes; cruéis, mas instintivas dos perigos desses males. A mensagem contida nas imagens era muito clara e direta: a morte anda à solta nas ruas da urbe. Junto à drástica diminuição da letalidade dessas doenças, o desejo pela ciência também diminuiu o impacto visual da Peste. 

Hoje, cabe a artes como o cinema, onde a ficção é livre, a representação daquela imaginação que ainda habita nossas memórias, em diálogos riquíssimos com o passado, além da sincera estima do público. Enquanto isso, no dia a dia das notícias, a representação visual da Peste se tornou mais que nunca caricata. Ela também encena situações irreais, imaginadas, como na caricatura de Fabrice Erre, onde o vírus se alastra pelas ruas à espera de transformar novas vítimas em zumbis. São ilustrações geniais, que fazem-nos rir, diminuindo as tensões do confinamento. Mas diante da imagem, o desejo pela semelhança à natureza do vírus, tal qual observada pelos microscópios, deixa de nos causar medo. Não são nada mais que germes de propagandas de pasta de dente. Tão pequena e tosca, a ameaça microscópica não parece capaz de nos fazer mal algum. Esquecemo-nos que Davi derrubou Golias.

Tom Janssen: Corona and Goliath. Publicado em Cagle, 13 mar. 2020. Disponível online.


(1) EZABELLA, Alessandro. Hernani de Irajá: arte e ciência de um sexólogo brasileiro. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 78. Disponível online.
- Mais sobre a gripe espanhola no Rio de Janeiro:
GOULART, Adriana. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist. Ciênc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, 2005. Disponível online.

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