Você disse pedofilia?

Outro dia, escrevi aqui, neste blog, um post intitulado "Mulheres maduras e jovens amantes". Eu havia assistido ao filme, de fato comovente, Mourir d'aimer, dirigido por André Cayatte, que retoma a história de Gabrielle Russier, uma professora apaixonada por seu aluno de 16 anos. Perseguida pelos pais do rapaz, foi presa e terminou se suicidando.


Gabrielle Russier - Fotograma de um filme doméstico, encontrado em seu apartamento, e com a etiqueta: immontrable ("imostrável", ou não-mostrável)



Eu gostei muito do filme quando o vi pela primeira vez, em Aix-en-Provence. Eu acabara de chegar para viver lá durante um período que - não sabia ainda - iria durar dez anos. O caso da professora havia ocorrido há pouco, e estava ainda presente nas conversas.

Disse que gostei do filme mas, na época, gostei com má consciência. Porque Truffaut e a Cahiers du cinéma desprezaram-no em textos veementes - Cayatte seria um "necrófago", querendo "encher os bolsos com cadáveres mornos". E então, nos meios intelectuais da época, não era lá muito permitido gostar de coisas condenadas por aquela sagrada revista.

Hoje, as obras dos cineastas que foram fulminados pela Nouvelle Vague estão em sério processo de revisão, e tive prazer em constatar que Mourir d'Aimer resistiu ao tempo pelas suas qualidades. É sincero e convincente.

Em todo caso, apesar das críticas intelectuais, e com uma excelente atriz - Annie Girardot no papel da infeliz professora - fez um extraordinário sucesso na França.


Annie Girardot, intérprete de "Mourir d'Aimer", de Cayatte, numa cena do filme, é capa da revista L'Express em 1971. Legenda: "O que faz chorar a França".



Depois de ter visto o filme aqui em casa, e de tê-lo mencionado neste blog, comprei num sebo as Lettres de prison (Cartas da prisão - 1970), que Raymond Jean reuniu e prefaciou logo depois do suicídio.

Raymond Jean foi um professor de literatura da Universidade da Provença. Pude conhecê-lo pessoalmente e lembro-me de termos jantado uma vez em casa de meu professor Gérard Monnier. Foi um bom escritor de romances: gostei muito dos que li dele - La ligne 12 (A linha 12), La fontaine obscure (A fonte obscura), La lectrice (A leitora), este excelentemente adaptado para o cinema por Michel Deville, com Miou-Miou no papel principal.

Raymond Jean era um homem generoso, sensível às injustiças, tanto individuais quanto sociais. Orientou uma dissertação que Gabrielle Russier redigiu sobre o Nouveau Roman, e os dois permaneceram próximos.


Gabrielle Russier - Fotograma de um filme doméstico, encontrado em seu apartamento, e com a etiqueta: immontrable ("imostrável", ou não-mostrável)



Disse que Raymond Jean era sensível às injustiças individuais e sociais. Neste caso, as duas facetas se superpuseram: Gabrielle Russier foi perseguida pelos pais de Christian Rossi - pais de esquerda que flertavam com os partidos gauchistes! - professores da Universidade, tomados de um incompreensível moralismo. Mas foi também perseguida pela própria universidade, e pelo mecanismo judiciário que, assustados com a grande revolta de 1968, não deixaram passar a oportunidade para fazer dela um exemplo de punição.


A Dyane vermelha de Gabrielle Russier, carrinho popular, apelidada "tartaruga"


O caso de Gabrielle Russier abalou a França. O presidente de então, Georges Pompidou, solicitado numa entrevista coletiva a se manifestar sobre o suicídio, respondeu com um poema de Paul Éluard, a respeito das mulheres que tiveram a cabeça raspada no final da 2ª guerra mundial  por haverem namorado alemães durante o período da ocupação. Traduzo aqui como posso.

Entenda quem quiser
Eu, meu remorso foi
A infeliz que ficou
No pavimento
A vítima razoável
Com o vestido rasgado
Com olhar de criança perdida
Descoroada desfigurada
Aquela que se parece com os mortos
Que morreram por serem amados

Uma garota feita para um buquê
E coberta
Do negro cuspe das trevas

Uma garota galante
Como uma aurora de primeiro de maio
O mais amável bicho

Enxovalhada e que não entendeu
Que está enxovalhada
Um bicho preso na armadilha
Dos amadores de beleza

E minha mãe a esposa
Gostaria bem de mimar
Essa imagem ideal
De seu infortúnio na terra.


Mulher tendo os cabelos raspados, culpada de "colaboração horizontal" durante a segunda guerra mundial, na França.

A França, e particularmente Aix-en-Provence, onde Gabrielle Russier morava e estudara, cidade universitária, eivada da vivacidade estudantil (150000 habitantes, 30000 ligados a Academia), estava dividida no pós-1968. De um lado, os assustados, mas aliviados por tudo ter voltado à ordem. De outro, os inconformados, que se agitavam, acreditando num futuro melhor (se eles soubessem...), no "é proibido proibir", na "imaginação no poder", no "viver sem tempos mortos, gozar sem travas", no "tomem seus desejos por realidades", em William Reich e em todas as libertações.

Gabrielle Russier não compreendia o que estava ocorrendo. Era uma ótima professora, de alto nível (era agrégée, quer dizer, havia feito um concurso dificílimo, que a punha na categoria mais elevada dos docentes do ensino médio), reunia em sua casa seus alunos do liceu, sabia ensinar porque era apaixonada pelo que ensinava. Tinha 31 anos, apaixonou-se por um aluno de 16. Os dois se amavam e se amaram. Onde estava o mal? perguntava-se.

Gabrielle Russier na praia, com seus alunos. No centro, Christian Rossi


Gabrielle Russier foi condenada uma primeira vez, com pena leve. Mas, na França, o promotor tem direito de recorrer se achar a punição insuficiente.  Escreve Raymond Jean en seu prefácio às cartas de Gabrielle Russier - 

"Pois - é perfeitamente claro para todo mundo - se o promotor geral de Aix, por intermediário do promotor de Marselha e de seu substituto, interpunha um apelo a minima, é porque estimava que Gabrielle não tinha sido condenada o bastante e que era necessário obter uma nova condenação (...). Neste caso, ela seria verdadeiramente punida: teria sido possível penalizá-la na sua vida profissional, coisa que ela temia sobretudo. 


"Era preciso, para tanto, declarou textualmente o substituto, uma inscrição no registro criminal para facilitar a ação disciplinar e o afastamento de seu trabalho". (...) "Perguntou-se se eles [os magistrados] tinham agido de concerto com as autoridades universitárias [Gabrielle Russier candidatava-se a uma vaga em Aix] ou acadêmicas. Mas não, nada, nem um indício. Telefonemas, encontros eventuais? Puras suposições. É "próprio" dos dispositivos de segurança de uma sociedade burguesa que, em seu funcionamento, eles não deixem rastro."

Ficha de Gabrielle Russier, na prisão das Baumettes, em Marselha

Gabrielle ficou uma temporada na prisão, 50 dias, por se ter recusado a revelar onde estava Christian Rossi, que havia fugido. Entre outras medidas pedagógicas dos pais, estava o envio do rapaz para um instituto psiquiátrico onde se submeteu a uma pesada sonoterapia. 

Ela suicidou-se pouco antes do segundo julgamento: a prisão a deixara profundamente fragilizada. "A situação é muito grave para mim, para  as crianças [ela se refere a seu casal de filhos], se for demitida da educação nacional. Não entendo mais nada, nem do que ouço nem do que leio. Estou toda arruinada, mental e fisicamente."


Foto de Gabrille Russier com uma vizinha e amiga, que a acompanhou ao tribunal.

O sentimento de injustiça desse caso abalou a França esclarecida. Um excelente grupo de pintores, a Coopérative des Malassis (Cooperativa dos mal sentados, composta por Henri Cueco, Lucien Fleury, Jean-Claude Latil, Michel Parré, Gérard Tisserand, Christian Zeimert ), que produzia obras coletivas de grande formato (por vezes em outdoors), militantes de esquerda, derivados do movimento "La nouvelle figuration", versão politizada do pop-art norte-americano (tão neutro politicamente), tomou o caso Russier como tema.


Coopérative des Malassis - L'affaire Gabrielle Russier, 1970. Museu de Dôle. A pequena cidade de Dôle possui um museu com uma importante coleção Nouvelle Figuration. Que, infelizmente, não fica exposta...

A grande jornalista Françoise Giroud formulou uma ideia pertinente: "Ninguém se suicida por amor, mas por falta de amor. O mais jovem dos dois talvez fosse ela. Enamorada, a mulher ativamente adulta teria usado de astúcia para conservar seu amante. Mulher que abrigasse não uma revolta global, portanto pueril, contra "a maldade e a estupidez humanas", mas com uma verdadeira consciência política, teria fortificado essa consciência na cadeia, ao invés de sair dela extenuada."

Fraçoise Giroud entendeu até certo ponto, apenas. A jornalista teve também uma carreira importante na política, foi vice-presidente da UDF, partido de Giscard d'Estaing, futuro presidente da França. Ela compreendia perfeitamente como conduzir seus interesses, obtendo grande sucesso. Para tanto, impossível que não soubesse muito bem manejar o oportunismo das "astúcias" que fazem vencer na vida. Não compreendia a retidão daqueles que ignoram como navegar em zigue-zague. A retidão é, para ela, coisa pueril.

Apontou, porém, para uma questão essencial: Gabrielle Russier era inteira e íntegra. Amava, era amada por um jovem também íntegro e inteiro. É isso que faz a grandeza dessa tragédia vivida.


Christian Rossi e Gabrielle Russier


Eu tinha visto o filme, lido o livro, quando o jornal Le Monde publicou, desde o dia 26 de julho passado, um dossier em 6 capítulos sobre o affaire Russier. Foi escrito - de modo admirável, com pesquisa atual (documentos e testemunhos inéditos) e muito aprofundada, por Pascale Robert-Diard e Josephe Beauregard. É dele que extraio a maioria das fotos.


Gabrielle Russier filmando

*

E o que aconteceu com Christian? 

O dossiê do Le Monde faz um epílogo sobre ele:

"Em Paris Match, 27 de fevereiro de 1971, Mario Rossi [o pai de Christian] dá uma longa entrevista a Jean Cau. Ele condena Gabrielle Russier e sua "avidez afetiva" e, acima de tudo, sugere que o filho estava cansado dessa relação exaustiva. Christian respondeu duas semanas depois no Le Nouvel Observateur: “Não os perdoo. Deve-se assumir a responsabilidade por suas ações. (...) O que eu menos lhes perdoo é que eles não foram lógicos consigo mesmos.  Podem se defender, acho que, de qualquer modo, não estava em sua mentalidade fazer o que fizeram, pelo menos no que diziam serem  suas idéias. Isso é o mais sério. "

O jornalista Pierre Benichou pergunta:

- Eles amavam muito você?

- Eu não sei.

- E você, você gosta deles?

- Não.

Sobre seu caso com Gabrielle, disse: “Não era paixão, era amor. As memórias que ela me deixou, ela as deixou para mim. Eu não tenho que contá-las. "

Desde esse dia, Christian Rossi se calou, fixado nessa imagem de um jovem alto, em cólera, de 19 anos, com uma barba tão negra quanto seus cabelos eram longos. Nos anos que se seguiram, os colegas da universidade de seus pais lembram-se de ver Marguerite Rossi [a mãe de Christian] oferecendo a eles os queijos de cabra que seu filho fazia em sua propriedades das Cévennes. Depois Christian mudou-se para o Lot, onde comprou uma fazendinha. Em janeiro, completou 68 anos."




As injustiças que assinalei acima saltavam aos olhos na época e, talvez, hoje mais ainda. 



Lembro um caso, também acontecido na França, de amor entre professora e aluno que deu muito certo. Emmanuel Macron era aluno de Brigitte Auzière, casada na época do encontro. Emmanuel, em 1993, tem 15 anos, Brigitte, 40. A família Macron se escandaliza, mas o casal levou com habilidade discreta a relação. Continuam juntos, hoje que Macron é presidente da França. Abaixo, fotos de ambos na época do encontro.



Há, no Netflix, uma comédia agradável, um pouco molenga, dirigida por Axelle Laffont. Chama-se MILF, e eu deixo ao leitor que não conheça a palavra a busca para descobrir sua significação um pouco vulgar. A diretora conta uma história de férias à beira mar: três garotões, pouca coisa mais velhos do que Christian Rossi quando viveu sua tragédia, namoram três cinquentonas de aparência jovem.




Uma delas é a própria diretora, Axelle Laffont, e todas estão numa forma impecável. O filme é simpático porque propõe a independência e a autonomia das mulheres para escolherem parceiros, mesmo os muito mais moços, sem que ninguém tenha nada a ver com isso. Mundo solar e feliz, muito diferente do de Gabrielle Russier. 


Fico pensando, porém, se o caso Russier fosse, hoje, mas em situação inversa: um professor de 30 anos que se envolvesse com uma aluna de 16. Claro está que tudo depende da mentalidade de quem estiver envolvido: pais, colegas, escola. Mas talvez tivéssemos assim, hoje, uma situação mais delicada. Mais difícil também, talvez, imaginar, hoje, uma comédia DILF que passe ilesa às condenações, Dad substituindo Mom na sigla, com quarentões paquerando garotas de 20 anos. Talvez não fosse tão bem aceito. Mas não sei, fico em interrogação.


*

Carta de Gabrielle Russier a seu amigo Albert, escrita da prisão das Baumettes, em Marselha.

Sexta-feira, 30 de maio de 1969

Escrevo sempre, gostaria de tranquilizar vocês todos mas agora creio que é impossível. Você se enganava quando me dizia que a verdade cresce na sombra das prisões: seguram-me aqui por motivos que não compreendo, que nada têm a ver com a realidade e eu não aguento mais de não compreendê-los, invejo as garotas que sabem o que fizeram, sabem do que as acusam. Eu não sei, talvez sejam os discursos deles que me tornam estúpida, assustada, andando em círculos. Albert, estou no fim de minhas forças porque me acusam demais, não sei mais onde está o justo e o verdadeiro, de tanto estar impregnada pela atmosfera daqui, de tanto receber papéis que eu não compreendo nada. Não é possível parar com esse massacre de fato? O atentado contra a vida está caminhando para o sucesso, lentamente, insidiosamente, não sei como isso pode ser possível, mas é. Teria preferido cem vezes ser batida, ou morrer brutalmente. Sinto agora por não fazer aquilo que me tentava tanto quando fui um dia a Aix: atravessar esse canteiro, nem sei mais direito como isso se chama, que fica no meio da autoestrada.
Não posso mais ser forte, nem paciente, porque não tenho mais razões de o ser. Nem consigo mais sorrir, ler três linas, tudo se embrulha o tempo todo eu me pergunto por que me guardam aqui, por que me dizem que sou culpada, eu gostaria tanto compreender do que! Por favor, diga a eles para parar com esse massacre, sei perfeitamente que isso não serve de nada, eu digo ainda sim se eles queriam me machucar, eu não queria, eles sabem bem. Estou tão farta deste mundo onde só existem loucas, teria preferido o hospício, qualquer coisa, melhor do que as maledicências, as mesquinharias delas. Fecho-me o mais possível dentro [da cela], mas dentro eu fico andando em círculo e não paro de pensar. Pelo menos, elas são inconscientes, é a força que têm. Verdadeiras menininhas - todas - Parece até que elas gostam de ficar aqui. E, além disso, elas não refletem, eu só faço isso. Diga-me que esse pesadelo vai cessar, aqui as carcereiras me dizem isso gentilmente, mas não acredito mais em ninguém. Digam-me ainda assim, e tanto pior se não é verdade. No entanto, eu obedeci a eles, tinha feito tanto esforço para obedecer a eles, então, o que querem? que eu fique completamente maluca, não falta muito, não digo isso para que você fique com medo, ou para machucar você, digo para que você me perdoe se não me reconhecer mais.
Cuide de Joël e Valérie [filhos de Gabrielle Russier] com Michel [marido de quem ela se divorciara]. se eu não aguentar mais, eu não aguentarei mais, estou perdida. Albert deve ser uma doença mas é assim estou farta de que eles me machuquem por nada, queria dormir, esquecer.
Até logo, não sei mais à qual logo, não sei mais.

Gabrielle

Gabrielle Russier se suicidou três meses depois, dia 1 de setembro de 1969


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