História é ficção e vice-versa

 Saio atordoado da leitura de Yo, el Supremo, de Augusto Roa Bastos. Tudo o que já se disse de bem sobre esse livro é pouco.

Deixo aqui impressões de primeira leitura. Nada que se queira valendo alguma coisa.



Ignacio Nunez Soler

Ignacio Nunez Soler - Assunção, 1891 - Assunção, 1993 - Manifestación Obrera (1960):


Os comentários que pude ler a respeito de Yo el Supremo insistem sobre a complexidade narrativa do romance. Várias fontes intervém: o ditador doctor Francia - nunca nomeado - escrevendo em versão pública e em outra secreta; seu secretário; um comentador, ou compilador facilmente identificado como o autor do romance; e vários documentos transcritos, em princípio autênticas fontes documentais. A tal ponto que quando, numa longa citação do embaixador de Pedro I em Assunção, Antonio Manoel Correa da Camara, aparece o nome Roa, o compilador, para que não se duvide da autenticidade desse texto, põe uma nota de rodapé: "O compilador deseja esclarecer que o lapso e a menção não lhe correspondem; o informe confidencial de Correa menciona este sobrenome, segundo pode consultar-se no tomo IV de Anais, p. 60 (N. do C.)."

Ou seja, avisa: não inseri meu sobrenome Roa neste lugar levado por algum bizantinismo de autor porque esse nome existe de fato no original.


Ignacio Nunez Soler - Assunção, 1891 - Assunção, 1993 - Obreros reparando edificio derruido 


Não acreditei que o texto de Correa da Camara fosse autêntico, porque sua qualidade literária pareceu-me muito alta e, de certa maneira, moderna. Fui atrás. 

Tive a sorte de encontrar, num número dos Cadernos do CHDD (Centro de História e Documentação Diplomática - Ano 18, nº 35, segundo semestre de 2019),  um estudo de Afonso Aurélio Porto intitulado "Notas biográficas sobre Antonio Manuel Correa da Câmara" e, nele, a transcrição do texto citado por Roa Bastos. A alta qualidade literária que me havia impressionado pertence de fato a Correa da Câmara. Roa Bastos faz poucas alterações, dentre as quais uma que é minúscula, mas fascinante. Aqui vai o texto original:

"Mais um passo, Senhor Roas, na estrada enxovalhada dos insultos, e conhecerão o governo paraguaio, e o seu delegado, e, bem a pesar seu, até que ponto o representante do Império sabe sustentar a dignidade do seu eminente caráter, e a majestade ofendida do seu soberano."

No livro de Roa Bastos é assim (em tradução minha): "Mais um passo, senhor [senhor em português no original] Roa, no caminho dos insultos, e conhecerá o Governo paraguaio até que ponto o representante do Império sabe sustentar a dignidade de seu eminente caráter, e a ofendida majestade de seu soberano!"


Jean-Baptiste Debret - Coroação de D. Pedro I



As diferenças são as seguintes. Em Yo, el Supremo, desaparece o adjetivo enxovalhada, para estrada ou caminho; senhor vem em minúscula e na grafia portuguesa (para ser fiel, a tradução deveria trazer "Señor"); e o ponto final é substituído por uma exclamação, que acentua a veemência da frase. 

Há outra, porém, que pode passar quase despercebida mas que me parece a mais importante: Roas torna-se Roa.

O autor acentua a coincidência com seu sobrenome cancelando o s. Expõe, de propósito, a identidade entre seu próprio sobrenome com o do personagem histórico no escrito citado - que não é de sua lavra.

Isso revela a identidade que Roa Bastos faz ocorrer entre História e ficção, ou melhor, entre documento e ficção - já que a História pode ser sentida como uma forma de ficção.  Suponho, por analogia, que os textos citados no livro, apresentados em duas colunas e em caráter pequeno, assim como a necrofílica retórica que paira nos escritos oficiais do apêndice, sejam autênticos, ou talvez, apenas, retocados aqui e ali.

Nesse sentido, a estrutura narrativa muito complexa de Roa Bastos tem a mesma natureza, embora em hiperdesenvolvimento, da estratégia do "manuscrito encontrado" que aparece com tanta frequência  na ficção ocidental desde o final do século XVIII e atravessa todo o século XIX. Ou seja, o dado pseudo-verdadeiro que garante a verdade daquilo que é contado - embora o que é contado seja falso. Ou um pouco falso, ou em parte falso, quando se trata do romance histórico que se vincula à documentação, como é o caso, por exemplo, de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas. 

O resultado de Yo, el Supremo sugere, porém, uma fantástico fusão entre a História e sua interpretação sob forma literária. Ele me levou a uma sensação semelhante à da leitura proporcionada por Os sertões, de Euclides da Cunha. A diferença é que Euclides não se quer literatura ou ficção, enquanto Yo, el Supremo se apresenta como tal, mas limitando as liberdades oferecidas pela literatura e pela ficção por meio das numerosas - muito numerosas -  fontes históricas de que se alimenta e deriva.

Não se trata, como em Os sertões, de uma geografia, de uma antropologia, ou de um testemunho transfigurados pela potência heroica do estilo. Trata-se de um caldeirão do bruxo em que esses elementos se misturam, fazendo nascer a ficção que constrói a História. 

É fascinante o fato de que o ditador surja no livro como, ele próprio, um resultado produzido pela realidade que viveu e pela criação do escritor. Vários comentadores insistem na identidade entre o Supremo e Stroessner. Elas são muitas e evidentes - incluindo o violento autoritarismo que, no caso de Stroessner, determinou a perseguição ao próprio Roa Bastos, condenando-o a longo exílio. 

Mas El Supremo nasceu das Luzes e conservou um espírito ilustrado em relação às populações mais pobres. Combateu as oligarquias latifundiárias, investiu na alfabetização e sua habilidade política foi necessária para resistir às investidas devoradoras dos vizinhos gigantescos e poderosos, como o Brasil e a Argentina. Esses aspectos surgem com clareza no romance, mesclados com a violência autoritária. Talvez el Supremo - tal como é delineado no livro - possa ser definido como um tirano esclarecido, ou como um esclarecido tirânico.


Otto Dix - Crânio - 1924


Do mesmo modo que em El general en su laberinto, de García Marquez, o líder está às vésperas da morte. Marquez foi criticado por patriotas porque seu Bolívar parecia indigno do mito augusto do Libertador. Bolívar não me pareceu ter sido rebaixado por Marquez, mas humanizado na sua agonia. Os herois de Bastos e de Marquez são habitados pela solidão e por seus próprios fantasmas. 

A História, em Yo, el supremo, é constituída pela dominação e pela violência. Ela se repetirá, como profetiza o próprio ditador, encarregando-se de antever os desastres futuros. El Supremo faz a História, como diz várias vezes, mas é também parido por ela.



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