A música clássica precisa ser chata?

Escrevo este post porque descobri no YouTube um vídeo que me deixou muito feliz.

Foi produzido graças a um grupo temático de pesquisa sobre a história da interpretação no século XIX. É desenvolvido na Universidade de Artes em Berna, Suiça, que depende da Universidade de Ciências Aplicadas. Seu financiamento vem da Swiss National Science Foundation. O projeto é ambicioso e parece ter os meios de suas ambições.


James Archer - Retrato de Joseph Joachim -


O que faz esse vídeo? Mostra que as pesquisas realizadas na Universidade de Berna e comandadas pelo Professor Kai Kopp não são apenas teóricas, mas práticas também.

Leiam a explicação antes de ver o vídeo:


Joseph Joachim, romança em dó maior 
Reconstituição da gravação do compositor 1903 
Em 1903, o famoso violinista Joseph Joachim (1831-1907), um amigo próximo de Schumann e Brahms, fez várias gravações de gramofone. Entre dois de seus próprios arranjos de danças húngaras de Brahms e dois movimentos de obras solo de Bach, ele gravou uma composição sua, Romança em dó maior de ca. 1855. Em um projeto de pesquisa no centro da Universidade de Artes de Berna para a interpretação da música do século 19, a gravação da romança de Joachim é estudada de perto para entender seu famoso estilo de performance que apresentava flexibilidade rítmica e um uso esparso de vibrato.

Para ter uma perspectiva interna de sua interpretação, pesquisadores que são músicos profissionalmente treinados, imitam a execução gravada o mais fielmente possível. Movimentos corporais como reverência e fraseado, dedilhados e portamento são reconstruídos em um ambiente controlado para avaliar como Joachim realmente atuou ('incorporação'), o que acaba levando a uma reprodução de toda a performance ('reencenação'). Nessa configuração, a 'reencenação' de Johannes Gebauer (violino) e Sebastian Bausch (piano) é gravada em um Fonógrafo Edison e com equipamentos modernos simultaneamente, para descobrir se Joachim ajustou sua execução aos obstáculos da tecnologia de gravação acústica e para transferir sua performance (ou a imitação dela) em uma sala de concerto acústica.

Para obter mais informações sobre o projeto da Swiss National Science Foundation liderado por Kai Köpp na Bern University of the Arts, consulte http: //www.hkb-interpretation.ch/inde ... e http://p3.snf.ch/ Projeto-159278

Aqui vai o vídeo:



Assinalo que Joachim tocou sob a batuta de Mendelssohn, foi acompanhado por Clara Schumann e, amicíssimo de Brahms, estreou seu concerto para violino.

Explico agora o meu entusiasmo.

Há um paradoxo irritante. De um lado, os intérpretes da "música antiga" ou "barroca", odeiam as interpretações das obras desse período em versões contemporâneas, ou seja aquelas fundadas nas tradições do século XIX. A preferência pelas interpretações de época teve, como consequência , o fato de que hoje seja muito difícil ouvir essas execuções "tradicionais", ou "românticas" como faziam Klemperer ou Karajan com Bach, por exemplo. Elas ficaram "demodé".

Os barroqueiros trouxeram novas sonoridades e sensibilidades à música, um aporte inestimável. Para tanto, tiveram que se debruçar sobre tratados, iconografias, relatos, tentando buscar - bela busca sempre inalcançável - as maneiras de como fazer música com estilo fiel em seus instrumentos filológicos.

Ora, a música do século XIX é tratada hoje de modo completamente diverso. Rompe-se com as tradições em nome do rigor. As interpretações do período são ignoradas, e mais: desdenhadas, desprezadas, consideradas "de mau gosto" quando comparadas aos critérios atuais.

Eu diria que esses critérios atuais são sobretudo escolares e limitados. Seus aspectos positivos estão no rigor interpretativo e na perfeição do som. Seus aspectos negativos são a abolição da flexibilidade, essencial outrora, e a desconfiança perante os efeitos sonoros que eram caros aos intérpretes do passado.


Brahms, sentado, e Joachim, em pé. Foto de 1855 circa.

Fico pensando que beleza seria se as escolas de música decidissem propor exercícios assim: você vai tocar Brahms? Ouça Joachim, que o conheceu; e se é violinista, tente imitar. Se é pianista, ouça Ilona Eibenschütz e tente imitar.

Como professor, embora em área muito distinta, estou convencido de que a imitação é uma ótima pedagogia. Ela não tira a personalidade de ninguém. O aluno imita, e instintivamente usa o que aprende com isso para forjar sua própria personalidade. Ao contrário, a disciplina genérica, que ensina apenas com regras técnicas, pode criar prodígios de habilidade, mas não consegue em nada fecundar uma personalidade. Coisa essencial, que falta a tantos virtuoses que tocam as coisas mais difíceis tão certinho.

O que não dariam os barroqueiros para ouvir um Forqueray, um Sainte-Colombe, para não mencionar Vivaldi ou o próprio Bach? Ou um Crescentini, um Caffarelli, um Velluti? Para os cantores, a mesma coisa. Nada melhor do que um exercício de imitação. Com isso, a arte, o estilo, dos grandes intérpretes do século passado pode ser uma formidável fonte de ensino - e de filologia.  Pois existem gravações de Maurel, que cantou na estréia de Il Guarany e de Otello, de Tamagno, o primeiro e fabuloso Otello; de Adelina Patti, cantora que foi ouvida por Rossini; de Mary Garden, que estreou Pelléas (há mesmo uma gravação dela acompanhada por Debussy). Para não falar de Puccini: há registros sonoros de todos os seus grandes intérpretes que lhe eram contemporâneos, de todos os que estrearam suas óperas.


Mary Garden, como Ophélie, na ópera de Ambroise Thomas


"Ah! mas o gosto mudou! Ninguém interpreta mais assim!" Pois os barroqueiros não mudaram, para nossa maior felicidade, o gosto do público de 50 ou 60 anos atrás? Basta deixar de lado os preconceitos, e ouvir com atenção e respeito. O público, e os próprios músicos, terminam aprendendo.

(Outro dia, numa rádio francesa, tocaram um interpretação de Liebesfreud, de Fritz Kreisler para um violinista. Era uma escuta às cegas. Mal a gravação terminou, o violinista exclamou: "Que horror! Que mau gosto! Quem é que pode tocar assim?". O intérprete era o próprio Fritz Kreisler.)

No vídeo abaixo Elam Rotem (um barroqueiro!) demonstra, de modo simples e direto a partir de gravações históricas do início do século XX, as características de intérpretes mais antigos. Liberdade da linha melódica em relação ao acompanhamento (num sentido muito largo da palavra, ou seja, de tudo aquilo que sustenta a melodia, mesmo nas obras sinfônicas), rarefação do vibrato, largo emprego do portamento, andamentos mais acelerados (este talvez seja um ponto de debate, dependendo muito de quem se esteja comparando individualmente).



As gravações antigas são apaixonantes. Nelas, a música vive com intensidade, e capta sempre o nosso interesse. 

Cito de memória e à minha moda, uma frase do Abade Terrasson que Jean-Jacques Rousseau pôs em um dos seus livros: "Antes, a música movia até as pedras e comovia os animais. Hoje, ela é feita com ciência e bom gosto, mas deixa tudo no seu lugar, direitinho".

Aqui, algumas interpretações antigas. Para serem ouvidas sem desdém nem risos.

A primeira gravação da Quinta Sinfonia de Beethoven, de 1910. O maestro talvez seja Friedrich Kark, de Hamburgo. Tudo avança como numa aventura, cada episódio solicitando o seguinte, e a atenção fica presa.



A segunda, a Sonata para violino e piano de César Franck, pelo duo Blanche Selva & Joan Massià, puros produtos da antiga Schola Cantorum e portanto da tradição de César Franck.





A terceira, "Un bel dì vedremo", da ópera Madama Butterfly, por Solomiya Krushelnytska, a primeira intérprete da pequena japonesa na versão definitiva da obra, apresentada em Brescia no ano de 1904, que resultou num triunfo, salvando-a do fracasso ocorrido no teatro alla Scala três meses antes.




E, com todas as liberdades possíveis, rubatos, portamentos e ornamentos, uma das mais verdeiras, luminosas, jovens e apaixonadas Gilda, de Rigoletto, que se possa sonhar: Maria Barrientos em 1904.




Enfim, falando de portamentos, ouçam a esplêndida versão do Quarteto de Ravel, pelo Quarteto Capet, numa gravação entre 1925 e 1930. O compositor era amigo dos componentes do Quarteto.



Comentários

  1. Apaixonante ! Temos na Fiocruz um Dictaphone trazido por OC da Europa e alguns cilindros de cera. Tentamos, certa feita, reproduzir o que estaria gravado neles na esperança de ouvir a voz do próprio Oswaldo, mas estavam vazios...

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  2. Professor, acompanho as suas aulas sobre História da arte no Youtube,assim como os seus comentários aqui no blog. Admiráveis. Meus parabéns.

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  3. Essa interpretação de Un Bel Dì Vedremo, faz até o animal mais bruto chorar. Rousseau fez bem ao usar essa frase do Abade Terrasson, e você também ao resgatá-la para esse texto!

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