O mestre voluptuoso

Volupia, erotismo, sexualidade direta. Venus dorme profundamente, como uma bacante. E os sátiros espiam, hipnotizados pela divina beleza.


Nicolas Poussin - Vênus espiada por dois sátiros - Paris - col particular - entre 1624 - 1639


Revue de l'Art, que é a mais importante publicação científica francesa no campo da História da Arte, dedica seu último número a Nicolas Poussin. Há vários acontecimentos atuais ligados ao grande pintor: uma exposição consagrada ao Massacre dos inocentes, no museu de Chantilly, demonstrando o impacto dessa obra-prima sobre Picasso e Bacon: 








o anúncio da abertura próxima das novas salas Poussin, no Louvre, reunindo 40 telas; o anúncio por Pierre Rosenberg da publicação de seu catalogue raisonnée, que será o mais exaustivo até agora; e o dom, por esse historiador de 5000 desenhos de sua coleção para fundar um museu Poussin na cidade natal do artista, os Andelys.

O número da revista é rico de estudos iconográficos e históricos. Um deles, de Nicolas Milovanovic e Mickaël Szanto, intitula-se "Poussin e o amor".   Analisa uma tela redescoberta. Venus espiada por dois sátiros, que postei acima. Havia sido reproduzida em preto e branco em dois catálogos (1943 e 1948) e desaparecido. Agora,  restaurada,  afasta todas as dúvidas de atribuição que pesaram sobre ela.

O artigo associa o tom veneziano da obra de Poussin à Bacanal dos andrios, de Ticiano, que está no Prado, obra muito célebre:





Não é despropósito lembrar também a cena báquica de Poussin (Museu de Cassel - 1627), tela que consegue mesclar grande beleza cromática e de composição ao erotismo grotesco:





O artigo, porém, se concentra na relação do voyeur e do corpo feminino tomado pelo sono, entregue ao desejo despertado pelo olhar. Os exemplos sob o pincel de Poussin se multiplicam. Como a Venus adormecida e o amor. de Dresden (1628):




Dois pastores ocultos na folhagem olham a deusa que se abandona ao sono em pose lasciva.

Na versão de Venus espiada por dois sátiros, da National Gallery de Londres, de 1626, a sexualização se acentua. Um sátiro retira os lençóis, sobre o sexo da deusa escorre uma faixa de tecido que o põe ainda mais em evidência. Há um olhar fascinado por aquilo que se descobre entre as pernas femininas:




Os dois estudiosos associam também o desenho de Poussin que pertence às coleções reais de Windsor. Aqui, o olhar é prolongado pela mão que avança sobre a coxa da ninfa (ou Vênus), agora acordada:



O artigo lembra que a iconografia não é inédita. Vai buscar os precedentes em ilustração da Hipnerotomachia Poliphili e em algumas gravuras dos Carracci.

Mas há dois pontos que permanecem obscuros para mim.
O primeiro é a questão dos títulos. Seria importante saber quando eles foram atribuídos. Por que se trataria mesmo de imagens figurando Vênus? As gravuras que mencionei trazem, todas menos uma, a designação de "ninfa". Mais ainda. O sono dessas mulheres é muito profundo, um verdadeiro torpor. Ora, essa é a característica das bacantes embriagadas, como pintou Ticiano e que se pode ver neste detalhe da imagem inserida mais acima:






O próprio Poussin retomaria cenas báquicas, como neste Midas e Baco, com mulheres de sono pesado, de 1630, que está na Pinacoteca Antiga de Munique;





O segundo ponto é que o jovem Poussin, nos anos de 1620, ficou muito próximo de Giambattista Marino, o "Cavalier Marin" dos franceses. Marino foi talvez o mais importante poeta italiano de seu tempo. Convidado por Maria de Médicis, florentina que esposara o Rei Henrique IV da França, viveu em Paris de 1623 a 1625. Tornou-se o mentor intelectual de Poussin e, graças a ele, o pintor ampliou consideravelmente sua cultura humanista. Poussin e Marino viajaram juntos para Roma em 1625, quando o poeta morreu.

Ora, Marino foi um poeta altamente erótico. Além de suas poesias curtas, escreveu o longo poema L'Adone, que conta os amores de Vênus e Adônis, abrindo com uma impressionante invocação que celebra a deusa do amor. Que Poussin tenha produzido suas obras mais poderosamente eróticas - dentre as quais várias consagradas a Vênus e Adônis - nos anos que seguiram sua amizade profunda com Marino, não pode ser coincidência. Teria sido importante que o estudo da Revue de l'Art ao menos se lembrasse desse vínculo.



Nicolas Poussin - Vênus e Adonis - Forth Worth - Kimbell Art Museum - 1624 - 1625


Acréscimo do dia seguinte. Por acaso, descubro este Sátiro e ninfa, de Franz Wouter, datado de 1612/14, posto em leilão pela casa Hampel, de Munique. Estimado entre 20000/40000 Euros. A ser leiloado dia 12 de abril.









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