A anatomia do mau juiz

Há um tema de Heródoto que foi bastante popular nas cidades dos Países Baixos durante o renascimento e mesmo depois. É a história do "Julgamento de Cambises".

O rei persa Cambises, do século VI aC,, descobriu que o juiz supremo Sisamnes havia recebido dinheiro para dar uma sentença corrupta. Mandou então que o juiz fosse esfolado e sua pele inteiramente retirada. Em seguida, recobriu a cadeira da justiça com essa pele, e designou Otanes, filho de Sisamnes, como novo juiz, dizendo-lhe para se lembrar sobre o que estava sentado quando distribuía justiça.

O texto original é o seguinte: "O pai de Otanes, Sisamnes, fora um dos juízes reais, e Cambises cortou-lhe a garganta e esfolou toda sua pele porque ele fora subornado para julgar injustamente. Então cortou tiras de couro da pele que havia sido arrancada e com elas cobriu o assento sobre o qual Sisamenes se sentara para julgar. Depois de fazer isso, Cambises nomeou o filho desse esfolado e morto Sisamnes a fim de que fosse juiz em seu lugar, advertindo-o a ter em mente a natureza do trono em que estava sentado." (Traduzi do inglês, de Herodotus, with an English translation by A. D. Godley. Cambridge. Harvard University Press. 1920.)

Note-se que nenhum dos exemplos iconográficos que passo a assinalar segue à risca o texto de Heródoto. Cambises era menos cruel no texto do que figurado nas imagens, porque degola Sisamnes antes de tirar sua pele. Os pintores preferem mostrar a tortura do mau juiz, sendo esfolado vivo. A convicção do horror visual ficava mais forte assim.



Esta versão do episódio é de Dirck Jacobsz Vellert, de 1542. Vellert ficou célebre em toda a Europa como pintor sobre vidro para vitrais. É o caso desta obra, que está no Rijksmuseum de Amsterdam. No primeiro plano, os carrascos derrubaram Sisamnes e lhe retiram a pele.

Logo atrás, Cambises faz um gesto, condenando o velho juiz que está na extrema esquerda de cabeça baixa. No fundo, Otanes, jovem e com cara desconsolada, senta-se abaixo da pele do pai estendida sobre ele, enquanto Cambises faz um gesto de admoestação. Fora da sala, um grupo espia pela janela, enquanto se vê, no fundo, a arquitetura de uma cidade: o tema tem força cívica

O desenho é largo e desenvolto, a composição se organiza num equilíbrio amplo de cheios e vazios. 




A versão de Jean I de Saive, (1597, museu Groesbeeck-de Croix, Namur) conta a história num díptico quase monocrômico, que lembra o maneirismo sienense de um Beccafumi. 

O primeiro painel, em espaço perturbado e saturado de personagens, põe em evidência Sisamnes amarrado numa coluna e sendo torturado, o que remete tanto à fórmula do Cristo na coluna, quanto a Mársias esfolado por Apolo.

O segundo painel emprega com mais clareza a volumetria arquitetônica em disposição oblíqua. Cambises, sentado, com um gesto admoesta Otanes.

Na parede do fundo, a pele de Sisamnes remete com clareza à de São Bartolomeu, no Juízo Final, de Michelangelo:



Rubens sintetizou a história em seu ponto final, evitando a representação da tortura. 




O fluxo convergente de pessoas centra tudo em Otanes, jovem, que se inclina com humildade. Seu manto vermelho prolonga o de Cambises, como se ele, Otanes, fosse uma continuação da autoridade real. No alto, a máscara formada pela pele da cabeça do torturado. (1626 circa, coleção particular).




Bem mais tarde, em 1671, o excelente pintor flamengo Vigor Bouquet oferece, em sua versão tardia, o exotismo de trajes orientais. No fundo, amarrado em duas colunas, Sisamnes é esfolado como se sua pele fosse uma roupa da qual se despe. No primeiro plano, Cambises ordena, com o cetro, que o novo jovem juiz, muito hesitante, ocupe o trono de seu pai recoberto pelos despojos encimados por uma horrenda máscara. Na extrema esquerda, a estátua de Têmis, vendada e com a balança. Um soldado apoia-se num fáscio, símbolo do poder coletivo.




A maravilhosa elegância retorcida de Joachim Wtwael - as pernas, no primeiro plano, parecem executar uma dança requintada (gravado por Sichen, 1607), mostra Cambises forçando o jovem Otanes a se sentar sobre a pele do pai. No fundo, de novo como Mársias, Sisamnes é esfolado de pé.

A versão mais célebre do tema é, no entanto, a que Gerard David fez para a sala do burgomestre, no conselho municipal de Bruges, em 1498. É um díptico.

 

No primeiro painel, o ato da corrupção vem figurado no fundo, sob um pórtico, em que o juiz, facilmente identificado com o manto vermelho, recebe uma bolsa de dinheiro. Mais atrás, uma praça de Bruges. Nela, a igreja de Nossa Senhora, que também possui, aqui, papel simbólico.



A cena principal está no primeiro plano. Cambises enumera os crimes do juiz corrupto. No trono solene, com seu manto, o juiz tem o braço tomado por um guarda. Atrás, um tecido escuro, como se a justiça estivesse de luto.




Sisamnes foi retratado com os traços de Pieter Lanchals, decapitado poucos anos antes do quadro ser realizado. Ele era juiz e encarregado da coleta dos impostos. Agiu contra os interesses da cidade e em favor do duque da Borgonha, suserano de Flandres. Lanchals foi decapitado em 1488 e enterrado na mesma igreja de Nossa Senhora, que aparece no fundo.
Entre o guarda e o juiz, surge a figura do jovem duque Felipe o Belo, de chapéu vermelho. Com 20 anos, ele assumira o encargo há pouco, e a pintura lhe demonstra o que acontece com aqueles que traem os interesses da cidade. Na parede, dois painéis de porcelana representam Hércules e sua esposa Djanira, que embebeu o manto de seu marido com uma substância destinado a queimá-lo e Mársias, esfolado por Apolo: os dois episódios, extraídos de Ovídio, assinalam traições, maus juízos e torturas sobre a pele do corpo.



Acima do trono, entre uma peanha e o alto do pano escuro, a data da pintura - 1498 - e alguns putti seguram guirlandas de frutos, significando a abundância e a riqueza da cidade, enquanto, no alto de uma coluna, um putto educa outro com palmadas no bubum. De cada lado, os brasões de Felipe, o Belo, e de sua esposa, Joana de Castela.



Vários personagens retratam autoridades contemporâneas de Bruges.



No primeiro plano, dois cães, sugerindo a fidelidade: um aristocrático galgo branco, com coleira preciosa, e um cachorro peludinho que se lambe.

É bem evidente que esta obra, a primeira de David para Bruges, é carregada de explícita alegoria contemporânea que funciona como alerta aos gestores da cidade.


No segundo painel, o espaço se desloca. A sala da justiça, com os putti enguirlandados, está no fundo, à direita. O trono é recoberto com a pele de Sisamnes, sobre a qual se senta o jovem Otanes, assustado. Acima da porta frontal, os emblemas de Bruges e de Flandres.


Bem diante de nós, o suplício explícito como em nenhuma outra obra do mesmo tema.



No chão, o manto de Sisamnes, forte significação da queda daquele que foi despojado de suas funções. Christiane Raynaud (La violence au moyen âge, Paris, 1990) escreve que a nudez de Sisamnes sugere sua forte degradação. No meu ver, ela é também acentuada pela presença do manto atirado ao solo.


Num canto, um cãozinho se coça.

Como se percebe, o díptico de David é muito complexo em suas alusões históricas. Ele é também muito diferente dos outros exemplos que apresentam a mesma tortura. 

É possível propor uma origem para a composição do segundo painel: a das lições de anatomia, que passaram a ser mais frequentes no século XV.


Uma edição datada de 1445/50 circa,  de 'Le Livre des Proprietes des Choses' de Barthelemy l'Anglais traz a ilustração:


O artista deve mostrar os barbeiros e cirurgiões, e a disposição clássica é dispô-los diante da mesa. Um cãozinho mostra-se muito interessado no sangue que deve escorrer dali.

Essas iluminuras têm papel ilustrativo. Difundem-se com bastante abundância a partir da segunda metade do século XV, como gravuras, com a disseminação dos livros impressos.

Fasciculo di medicina - Veneza, 1493, 

Neste exemplo, o professor não suja as mãos e não se mistura com barbeiros e cirurgiões: dita sua lição do alto da cátedra.

No século XVII, os retratos de grupo promovidos pelas guildas dos cirurgiões levam o tema das lições de anatomia a tornaram-se um verdadeiro subgênero na pintura holandesa.

Michiel Jan e Peter van Mierevelt  - A lição de anatomia do Dr. Willem van der Meer - 1617

Como cada cirurgião pagava para figurar na cena, o pintor devia fazer uma composição com retratos. Obrigação que, no caso da obra dos Mierevelt, faz com que cada um dos médicos, ao invés de olhar para o cadáver, volte-se para o espectador. Pernas de esqueletos pendem macabramente do alto.

A coleção de olhares é ainda mais impressionante na longa tela ( 147 x 392 cm), A lição de anatomia do Doutor Sebastien Egbertsz, pintada por Aert Pietersz, de 1603. O nome de cada médico está escrito na pintura.


A maioria dessas representações mostram o cadáver disposto horizontalmente em relação ao espectador. O quadro de Pietersz, que esconde muito o corpo, deixa-o com uma leve inflexão oblíqua.

A grande exceção nessa longa série de lições parece ser o frontispício da edição de Vesálio (Pádua, 1543), em que, no meio de uma confusa multidão, a mulher que está sendo aberta vem disposta num escorço quase frontal.


No entanto, a composição em oblíqua de David parece ter sido retomada apenas por Rembrandt.

Rembrandt - The Anatomy Lesson of Dr Nicolaes Tulp.jpg
Rembrandt - A lição de anatomia do Doutor Nicolaes Tulp - 1632

Rembrandt transforma as convenções próprias aos retratos de grupo numa fulgurância do saber. Respeita o princípio dos retratos, mas capta a intensidade de cientistas que buscam o conhecimento, e que buscam comparar a experiência empírica ao ensino dos escritos. Esse fervor transmitido pelo grande gênio, anuncia o iluminismo. 

Coincidência ou não, a pintura de David e a de Rembrandt mostram pontos comuns na disposição (e no detalhe do corte no braço esquerdo).


Um quadro anônimo figura a primeira lição pública de anatomia praticada  na nova sala de estudos anatômicos, situada no Burg, em pleno centro de Bruges, ao lado do palácio da municipalidade e, portanto, próxima à obra de David.


A relação entre os dois quadros é bastante grande: espacialidade, os arcos no fundo, o esforço de dispor o cadáver de modo inclinado e tendendo para a obliqua.

Todas essas obras ajuntadas indiciam fortemente o vínculo de O julgamento de Cambises de David com a tradição das lições de anatomia. David concebe sua tortura como uma exposição científica. 

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