Como nos livrarmos dos manipuladores.

Palavras que entram na moda são, de modo geral, irritantes. Mas há um adjetivo que se usa bastante agora e de que eu gosto muito: tóxico. Porque não havia nada antes que exprimisse, com tanta exatidão, o seu sentido quando aplicado aos seres humanos. As pessoas tóxicas não são apenas más: elas estabelecem uma relação direta conosco, nos envenenando.

Alexandre Cabanel - Cleópatra experimentando venenos em condenados à morte -  1887


Estou convencido de que os piores tóxicos são os manipuladores. Creio que a psicologia demorou para tomar consciência deles, seres que arruínam a vida de tantas pessoas, em relações de dominação e destruição.

Mesmo na literatura personagens tóxicos não me parecem tão frequentes. Em Shakespeare, Iago e Lady Macbeth, sem dúvida, não mencionando o fantasma do pai de Hamlet, um ambíguo manipulador. Tartufo, criado por Molière; Madame de Merteuil, em As ligações perigosas, de Laclos; Milady de Winter, em Os três mosqueteiros, de Dumas, também. 

Glenn Close como a Marquesa de Merteuil, no filme As ligações perigosas, de Stephen Frears (1988)


Dumas não introduziu novos manipuladores do mesmo calibre que Milady na seqüência de Os três mosqueteiros, ou seja, em Vinte anos depois e O visconde de Bragelonne. Isto talvez nos dê uma indicação. Milady está muito próxima dos esquemáticos vilões de folhetim, da "ruim da novela", que são manipuladores mecânicos. Talvez Dumas tenha querido evitar isso nas sequências. A complexidade das relações humanas na literatura atraiu mais os escritores do que os jogos esquemáticos de influências diretas. Em Shakespeare, a dimensão ontológica das paixões humanas exclui a complexidade do psicologismo, para indagar sobre a natureza propriamente metafísica dos comportamentos. 

A "ruim da novela" é de fato esquemática e mecânica. Mas é que os manipuladores são assim mesmo: esquemáticos e mecânicos. Não falo das pequenas manipulações que cada um acaba fazendo, falo de pessoas que não conseguem ser senão manipuladores.

Beatriz Segall como Odete Roitman, na novela Vale tudo, 1988


Nas famílias, nos casais, os manipuladores são capazes de torturas morais tão fortes quanto as físicas. Criam laços de dependência que se tornam muito difíceis de romper. A única boa saída é exatamente essa: a ruptura, o afastamento.

Os manipuladores reduzem seus próprios seres à estrategia. Tudo neles é estratégico, e a vida não lhes faz sentido se não estiverem em processo manipulador. Eles têm poderes de forte simpatia, sabem encontrar terrenos comuns de afinidades com suas vítimas, parecem compreensivos e protetores. Conhecem muito bem o outro para utilizar suas fraquezas, seus sentimentos de culpa, mas não reconhecem o outro nas suas diferenças. Esses poderes que, por vezes, quando o manipulador vem acompanhado de dominação destruidora,  podem levar alguém à mais violenta depressão ou ao suicídio. Manipuladores são vazios internamente, evoluindo apenas no intelecto e no oportunismo.

Victor Maurel no papel de Iago, ópera Otello, de Giuseppe Verdi (foto da estreia, 1887)


Curiosamente, nem sempre o alcance dessas estratégias nas carreiras dos manipuladores é positivo, talvez seja mesmo o contrário. Nas obras literárias, o final deles é sempre desastroso, e aqui a moral da história pode servir de razão: o mal deve ser punido. Mas creio que o interesse deles seja menos "vencer na vida" do que "dobrar o outro", no imediato. A estratégia do carreirista é mais ampla, deve contar com articulações mais complexas que não interessam no jogo momentâneo do poder de um sobre o outro.

Penso nisso por causa de uma novela de Philip Roth, que está no livro Goodbye, Columbus. Data de 1959 e é perfeita. Seu título: "O defensor da fé" (Defender of the Faith). 

Algumas semanas antes do final da guerra, em 1945, o sargento Marx, veterano da  Europa, é encaminhado para um campo de treinamento no Missouri. Marx é judeu.

Entre seus subordinados, está Sheldon Grossbart, praça também judeu. Roth narra, em detalhes, as estratégias deste último para obter privilégios, baseadas sobretudo na cumplicidade religiosa e de identidade étnica. Marx se vinga no fim. Mas isso eu não conto, porque é melhor ler a narrativa.

***
Ele se aproximou e se sentou na beirada da escrivaninha.
Estendeu a mão: "Sheldon", falou.
- De pé, Sheldon.
Descendo da escrivaninha, ele disse: "Sheldon Grossbart". Sorriu mais largamente por causa da intimidade para a qual me havia arrastado.

***

Ele me olhou com seus olhos sarapintados e cintilantes, depois fez um gesto com a mão. Quase imperceptível, apenas um leve giro do punho, e no entanto suficiente para excluir de nosso objetivo todo o resto da sala de relatório, para fazer de nós dois o centro do mundo. Parecia, de fato, excluir tudo o que se referia a nós, fora nossos corações.

***

E agora, tudo o que eu peço é um favor - eu pensei que um rapaz judeu compreenderia.

***

Eu me sentia feliz comigo mesmo - era um grande alívio cessar a luta contra Grossbart. E isso não tinha me custado nada. Barrett nunca perceberia e, caso contrário, eu me arranjaria para inventar uma desculpa. Fiquei um momento sentado à minha mesa, feliz com minha decisão.

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Quem era eu para ter-me mostrado tão mesquinho, tão duro? No fim das contas, não me pediam para mudar o mundo.

***

Fazia muito tempo que alguém havia ensinado a Grossbart a triste lei que consiste em dizer o falso para obter o verdadeiro. Não que eu pudesse acreditar no choro de Halpern - seus olhos tinham sempre um tom vermelho. Mas verdadeiro ou falso, isso se tornava mentira na hora em que Grossbart falou a respeito. Esse rapaz era pura estrategia.

***

- O que você é, Grossbart? Diga a verdade.
Creio que foi a primeira vez que eu lhe fazia uma pergunta para a qual não tinha resposta pronta.
- Como você pode fazer isso com as pessoas? perguntei.

***

Com uma espécie de nervosidade tranquila, eles engraxavam seus sapatos, guardavam suas roupas de baixo, tentando aceitar a sorte da melhor maneira possível. Atrás de mim, Grossbart fungava, aceitando a sua. E, resistindo com todas as minhas forças ao desejo de me voltar e pedir perdão por meu rancor, eu aceitei a minha.






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