Picasso, Guernica e a distopia

Picasso pinta uma de suas obras mais célebres em 1937, Guernica. As linhas da história são quase de conhecimento geral. A encomenda nasce do governo republicano espanhol como parte das obras do pavilhão daquele país para a Exposição Universal de Paris, de 1937. A tela é monumental 349,3 x 776,6 cm e levou um pouco mais de um mês para ser finalizada. A ideia foi primeiramente refutada por Picasso, mas acaba por aceitar o desafio. Depois dos acontecimentos de abril daquele ano, ou seja, o bombardeio aéreo na cidade basca de Guernica, no qual 44 aviões da Alemanha nazista, 13 da Itália fascista apoiados pelo golpe de estado de 1936 dizimaram a cidade. Símbolo inconteste da violência franquista, o quadro visitou diversos países. No Brasil, participou da 2ª Bienal de São Paulo, em 1953. Durante a ditadura de Francisco Franco, o quadro ficou nos Estados Unidos, tomando a Espanha apenas em 1981 e transferida ao museu Reina Sofia em 1992, local onde se encontra.

Pablo Picasso. Guernica. 1937


A tela já foi vista e revista por diversos historiadores da arte: Anthony Blunt, Rudolf Arnheim, Germain Latour, entre tantos outros. O horror e o desespero aparecem de imediato, sem rodeios na tela de Picasso. A fúria do cavalo, o corpo moribundo no chão com a espada quebrada. O espaço é apertado e tudo acontece aparentemente junto. O desespero da mãe no grito sem esperança com o rebento morto no colo, figuras e pedaços de corpos fantasmagóricos iluminados por uma lâmpada. Luz geométrica e a ausência de cores senão o preto e o branco: la vie n’est pas toujours très rose.

É uma obra cuja força e valor artístico e cultural ninguém duvida. Tem uma sobrevida para além da História da Arte. 2019: Dopo la caduta di New York é um filme de Sergio Martino, de 1983. Guernica tem um papel especial no filme. Este faz parte das distopias no cinema italiano impulsionados por filmes como Mad Max ou Escape From New York. Devastado pela guerra atômica não resta muito do mundo. A raça humana está com os dias contados, a radioatividade proliferou uma doença causando infertilidade, a esperança está carcomida. Neste mundo desesperado a civilização se parte em duas, os Euraks e a Federação.

2019: Dopo la caduta di New York. 1983


Em uma cena prodigiosa vemos a sala de um importante membro dos Euraks. Guernica faz a decoração. Suja e sobrevivente, prossegue sua vida agora no anonimato do gosto pessoal do general. Sem ele, provavelmente Guernica estaria perdida. Ela atesta não a denuncia contra um regime totalitário, antes, serve para um sistema fascista que vê naquele horror a justificativa para um mundo melhor, o único possível. 

Por outro lado, o filme de Alfonso Cuarón, Children of Men, de 2006 utiliza Guernica de uma outra forma em sua distopia. Em 2027, a infertilidade chega a índices alarmantes, não há mais crianças. Para alcançar seu intento, o servidor Theo Faron vai até seu primo, dono da “Arcas das artes”, instituição cujo objetivo, no caos, é resgatar obras de arte. David, de Michelangelo, certamente faz parte. Mas, a sala de jantar é ornada com a grande tela de Picasso. A decoração, diferente do filme de Martino, tem um caráter esperançoso. A imagem da mãe segurando a criança é potencializada no filme. É preciso correr, o rebento pode ser salvo.

Alfonso Cuarón. Children of Men. 2006

Alfonso Cuarón. Children of Men. 2006

No profundo caos a pergunta que se faz é: Vale a pena salvar o quê? A vida moribunda, que insiste em naufragar nos mesmos erros? ou a Arte, símbolo da esperança e da lembrança de resistências e humanidades que ainda podem estar em nós? A importância e o mito em torno de Guernica, sem dúvidas, são ampliados por produtos da cultura como estes filmes.

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