Vibração sonora


Oferecer, pela pintura, sensação equivalente ao prazer musical. Esse foi um desígnio que, desde os simbolistas, percorreu a modernidade. Os abstratos, em particular, percebiam, na experiência elevada e rarefeita que a contemplação suas obras conduzia, uma convergência perceptiva entre pintura e música.

Paul Klee- No estilo de Bach - 1919 - Gemeentemuseum - Haia

Paul Klee foi, talvez, o que mais insistiu nessa identidade entre as artes visuais e as dos sons.

Mergulhado em música desde a infância, aos 25 anos comprou um excelente violino Testore de 1712, no qual tocava todas as manhãs antes de pintar. Um de seus desenhos (17.3 x 28.5 cm) se quer "no estilo de Bach". A pequena obra insinua o que se poderia chamar, empregando a palavra em sua dualidade musical e visiva, de harmonia. Klee aproxima, de modo delicado, azuis, verdes e lilases que, em certos momentos se espraiam, em outros se contém, em outros ainda são limitados pelas linhas  

Há aqui a intuição de uma partitura estranha e cabalística. É música visual.

Klee semeou sínais, alguns singulares e misteriosos, outros mais claros: asteriscos que são como estrelas, lua, uma estrela de Davi. Inseriu também o que parece ser uma nota musical atrelada a uma reta e, mais evidente, uma fermata. Como se dissesse: trata-se mesmo de música.



O modo mais corrente, para não dizer o mais banal, pelo qual a pintura se associa à  música, consiste em figurar o instrumento ou o intérprete em ação. É uma solução de longa história por uma boa razão: o instrumento, mesmo quando silencioso, traz consigo a música, porque contém sua promessa.



Mulher tocando um violão é um quadro de Renoir. Está no museu de Lyon. Data de 1897. O momento do impressionismo havia passado há mais de vinte anos. A dissolução do mundo em pinceladas e cores chegara a uma crise que levou Renoir a buscar o contorno rigoroso e definidor da imagem. Foi seu período "ingresco" - que faz referência ao grande mestre. pintor e desenhista, Jean-Dominique Ingres. Mais tarde, em outra etapa, manteve a força da forma, mas suavizando-a pelo modelado complexo e luminoso, pela maciez das matérias e pela monumentalidade dos volumes.

A tela do museu de Lyon é uma das primeiras nesse espírito, e também a incorporar um violão, que Renoir introduziu em muitas outras.

Compreende-se: a forma do violão é bela, ondulante, precisa e sensual, porque evoca o corpo feminino. Foi perfeita para um pintor que buscava a solidez harmônica de um novo classicismo.


A fita cor de rosa com laços no vestido da violonista era moda espanhola, assim como o violão é um instrumento associado à Espanha. Trata-se porém de uma construção: o modelo é Gabrielle Renard, babá de Jean Renoir, filho do pintor, nascido em 1894 e que se tornaria um gênio do cinema. Por este mundo de ficções a tela é portadora de sonoridades musicais.

Gabrielle Renard aparece outras vezes em quadros de Renoir, algumas de violão em punho. Em outra obra, com chapéu, lenço e jaleco de maja, parece pontear as cordas, delicadamente sólida, classicamente harmoniosa.

Pierre-Auguste Renoir - Mulher com violão - 1897




No caminho inverso, ou seja, da música para a sugestão visual, há um equivalente dessas obras com violões de Jean Renoir. É La sérénade interrompue (entre 1909-1910), de Claude Debussy. O compositor também foi levado pela moda dos espanholismos, tão forte naqueles tempos. Seu piano toma o dedilhado do violão, que soa espanhol.

Ouça esta obra aqui, numa rara interpretação ao vivo de Vladimir Viardo, quando esse grande pianista russo se apresentou no Rio de Janeiro em 1996. A partitura indica "moderadamente animado" que ele concebe em modo urgente, evitando isolar os episódios e obtendo unidade graças à fluência de sua interpretação.




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