“Quero ser forte e eficiente como esta arma. AK-47 é
também o símbolo da violência da cidade contra os seus habitantes.” As
frases ditas pelo artista recepcionam os visitantes à mostra de seus trabalhos.
Coladas na parede, elas ladeiam o monumental retrato de um menino que, sereno, tem
o viso levemente melancólico. Percebe-se a sequência de uma sigla conformando a
pintura, AK-47, nome do célebre rifle russo que, dizem, é a arma de fogo mais
usada no mundo.
Zhang Dali, AK-47
(H8), 2008, acrílica sobre tela
O autor da afirmação e da obra é Zhang Dali, que nos anos 90 intervinha
nas demolições da cidade de Pequim. AK-47 era o seu codinome. Pixava com uma
linha sinuosa um perfil humano, às vezes usado como contorno ao buraco que o
artista abria nas ruínas, elas mesmas em breve derrubadas para a construção de
novos edifícios.
Zhang Dali, fotografias
de demolições em Pequim, 1998
As fotografias das intervenções representam espectros paradoxalmente
sólidos, em uma espécie de recorrência cíclica. Essa talvez seja uma marca que
perpasse a obra de Zhang Dali. Os registros da transformação urbana, as
pinturas da série AK-47, da série Slogan e em especial a produção
mais recente de cianotipia tratam desse traço fantasmático de forte materialidade
e presença que, mesmo na representação bidimensional, parece se transfigurar na
coisa representada.
Zhang Dali, pinturas
das séries AK-47 e Slogan
Zhang Dali, cianotipia
sobre algodão
É com a produção tridimensional, no entanto, que Dali obtém o
resultado mais impactante na evocação de algo ao mesmo tempo natural e sobrenatural.
As máscaras de fibra de vidro de One hundred chinese, para além da
verossimilhança com o real, guardam uma anima e individualidades um
pouco assustadoras – repare-se, no detalhe da foto, a veemência dos poros da
pele e a presença de sobrancelhas que, postiças ou não, acentuam de forma ambígua artificialidade
e morbidez (irresistível não associar as máscaras de Dali, por familiaridade, a
um dos elementos mais extraordinariamente originais da saga televisiva Game
of Thrones).
Zhang Dali, One hundred chinese, 2002 (fotos:
Alex Miyoshi)
Poster promocional
da 6a temporada de Game of Thrones, 2016
Outro axioma de Zhang Dali: “A alma molda a matéria do
corpo; a reprodução de cada corpo se torna modelo do próprio ser interior”.
Ele se refere à instalação Chinese offspring, na qual se exploram, além
das expressões faciais, a corporeidade humana em diferentes gestos.
Zhang Dali, Chinese
offspring, 2004-2010
O texto da mostra pode ser um tanto redutor ao observar que as
esculturas “de cidadãos vindos à cidade em busca de trabalho” estão “de
cabeça para baixo para significar a falta de controle que essas pessoas têm
sobre a própria vida.” E ainda: “O título Chinese offspring (Descendência
chinesa) pretende fazer refletir sobre a presente condição de um povo que
perdeu os valores dos sábios e heróis do passado, reduzido a um estado
subumano, engrenagem de uma máquina sobre a qual não há controle, privado de
ideais e de finalidade que transcendam a mera subsistência cotidiana.” É
inegável, de todo modo, a perturbação diante da obra. O material escultórico é mais
uma vez a “fria” e industrial fibra de vidro, que parece aferir aos corpos uma
fragilidade próxima à da carne.
Zhang Dali,
esculturas em mármore da série Permanence, 2015
Se nas esculturas anteriores o material é mundano, em Permanence
emprega-se um raro mármore branco que, segundo o artista, é composto por Al2O3,
Fe2O3, MgCO3, SiO2 e CaCO3. Essa pedra chinesa – o hanbaiyu – difere dos
mármores europeus e americanos por sua alvura peculiar, pela aparência estranhamente
sintética e por apresentar pequeníssimos pontos prateados luminescentes que lhe
dão um aspecto extraterreno. Na China, diz o artista, ela “exprime um status
elevado e o seu emprego era consentido somente nos palácios imperiais e nos
templos de alto escalão.” As estátuas de Permanence representariam
ainda, de acordo com a informação de escolta, “uma nova fase de pesquisa e
elaboração sobre a relevância do corpo humano qual emblema e representação de
uma sociedade e da sua ideologia prevalecente. Corpos de gente comum,
trabalhadores migrantes, são expostos ao público realizados no material das
estátuas clássicas, associado aos deuses e heróis do passado. Nessa nova forma,
eles transmigram da impermanência à permanência e contemporaneamente se
destacam da sua realidade cotidiana de ignorância e sofrimento.”
Obras de Zhang
Dali no Palazzo Fava em Bolonha, 2018
As obras de Dali estão na mostra Meta-morphosis, no
Palazzo Fava, em Bolonha. O lugar agrega sentido por abrigar importantes
afrescos dos Carracci, de corpos humanos volumosos, imponentes e enérgicos, contrapondo-se
e articulando-se à arte chinesa contemporânea, em geral considerada no Ocidente
como mera copiadora, em pé com a tradição italiana, mais propriamente bolonhesa
do século XVII. Trata-se de um acerto que, não importa se da curadoria, do
artista ou de outros, é fruto de quem sabe bem aonde está mirando.
Fontes:
https://genusbononiae.it/mostre/zhangdali/
http://www.artbooms.com/blog/zhang-dali-metamorphosis-bologna-palazzo-fava
https://www.icp.org/browse/archive/objects/demolition-world-financial-center-beijing
etprudKcami Mary Walton https://wakelet.com/wake/nbn7_GDKMyrcG5e1j2zHt
ResponderExcluirtranalacrie