Pílades e Orestes



Machado de Assis publica em 1906 Pílades e Orestes na compilação de contos Relíquias da Casa Velha.  
“Quintanilha engendrou Gonçalves”. É assim que Machado de Assis inicia o conto. A união entre os dois rapazes parece existir desde sempre, não foi forjada e só teria um percurso, caminhariam próximos um do outro: “Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram barachareis do mesmo ano”. Embora seguissem, nas suas vidas adultas, caminhos distintos, Quintanilha tornou-se político de carreira curta e Gonçalves advogado, o cotidiano era compartilhado de maneira matrimonial (atrevo-me a dizer até de dar inveja em muitos casamentos por aí...) “A vida que viviam os dois eram a mais unida deste mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro.”

O título do conto é explicado em uma passagem que denota julgamento moralista sobre o amor dos dois: Tal união não passava despercebida aos olhos ardilosos da sociedade, “A união dos dois era tal, que uma senhora chamava-lhes os “casadinhos de fresco”, e um letrado de Pílades e Orestes.”

A referência vem do texto de Eurípides (480 – 406 a.C.). O enredo de Pílades e Orestes é apresentado no terceiro ato da peça Ifigénia entre os Tauros (aqui estou usando uma tradução portuguesa). Sucintamente, o que ocorreu é que Orestes deveria roubar a escultura da deusa Diana e levá-la até território ateniense, somente assim estaria absolvido do assassinato da própria mãe. Acontece que a regra em Tauros é que nenhum estrangeiro é bem-vindo e aqueles que adentram a região deveriam ser sacrificados. Claro, os estrangeiros da vez eram Orestes e Pílades. Os dois são flagrados e levados imediatamente ao sacrifício. No momento das mortes, Pílades se oferece para ser morto no lugar de Orestes.

A ideia de que os dois homens fossem parceiros em qualquer empreitada aparece não só no texto de Machado de Assis. O escritor grego Luciano de Samósata (125-190 d. C) também apresentava a mesma união:

Orestes e Pílades, os quais, tendo tomado deuses [do amor]  como mediador das suas paixões mútuas, navegaram juntos, como que no mesmo barco: ambos mataram Clitemnestra, como se ambos fossem filhos de Agamémnon; por ambos foi assassinado Egisto; foi Pílades quem mais sofreu, quando as Fúrias perseguiam Orestes, e foi ele quem o defendeu em tribunal; não limitaram a sua paixão amorosa às fronteiras de Hélade, mas navegaram até os remotos confins da Cítia, um doente, e o outro tratando dele    

A dupla foi tema de esculturas, quadros e até peça de ópera.  Em 1779, Goethe compôs a sua própria Iphigenie auf Tauris, em prosa, voltando a ela em 1786, ano em que a reescreveu em verso. No mesmo ano de 1779, Gluck compôs a sua Iphigénie en Tauride, ópera que teve o libreto de François Guillard.

Afresco. Pompeia, Casa de la Citarista, Acervo Museu Nacional de Nápoles.

O afresco de Pompeia exibe do lado direito dois homens em pé. O homem nu, com um corpo atlético, a pele de uma coloração que lembraria o bronze, mãos que aparecem amarradas, mira o solo com olhar quase resignado. Na sua frente, o homem vestido possui o olhar dirigido acima do horizonte, mas com um semblante não menos preocupado. Segundo August Mau (1840-1909) em Pompeii, ist life and art (1899) seriam Orestes e Pílades, e do lado oposto poderia ser Toas, o rei de Tauros. Não há como deixar de notar a proximidade física entre os dois corpos e a beleza escultórica daquele corpo nu que talvez seja Orestes.


Escola de Pasitéles. Grupo Orestes e Pilades. Acervo Museu do Louvre. 

O museu do Louvre possui um grupo escultórico muito interessante. São dois homens jovens, nus. Apresentados um ao lado do outro, estão separados por uma estrutura rochosa que se estende verticalmente até a altura da cintura. Na parte superior, braço, ombro e parte do tronco se encostam. A mão erguida, a boca em direção ao ouvido do companheiro, que é correspondido com o olhar do outro direcionado ao solo, como se quisesse aproximar mais o ouvido para escutar algo de seu confidente, figuram gestos que refletem intimidade entre duas pessoas. A atribuição e a representação dos personagens ainda é incerta, mas o museu francês traz na legenda os dois rapazes como Orestes e Pílades.

Benjamin West. Pylades and Orestes Brought as Victims before Iphigenia, 1766.  óleo sobre tela, Acervo Tate, Uk.

No século XVIII o pintor anglo-americano Benjamin West(1738–1820) apresenta a cena em que Orestes e Pílades são capturados e levados até Ifigênia para serem sacrificados em nome da deusa Artêmis. Há alguma influência do neoclassicismo na composição do pintor. No primeiro plano destacam-se os corpos masculinos dos dois capturados. A vestimenta monocromática de cada um contrasta com a pele alva presente nos dois corpos. As cabeças abaixadas indicam resignação diante do destino que os levaria à morte. Ifigênia do outro lado da cena, separada dos rapazes pelo altar onde são realizados os sacrifícios, encara os estrangeiros que são apresentados pelos capatazes.

James Gillray. Publicação de Hannah Humphrey, Abril, 1797. Pylades and Orestes. Acervo: The Metropolitan Museum of Art. 

O caricaturista James Gillray(1756-1815) subverte a tradição da apresentação do tema e ironiza a dupla ao exibi-los com roupas contemporâneas. As dimensões corporais não são mais semelhantes e nos parece divertido que um corpo tão frágil guie um homem tão corpulento pelo braço. Os olhos fechados do homem de casaco azulado indicariam confiança ou apenas cegueira causada pela paixão?





Comentários

  1. Aline, li o conto machadiano hoje. Curioso você falar de Eurípides (há pelo menos três peças dele em que aparece a dupla de amigos: além de "Ifigênia na Táurida", "Electra" e "Orestes", com os eventos anteriores ao reencontro com Ifigênia - Eurípides narra o começo de tudo na peça "Ifigênia em Áulis", ou Áulide), quando Machado fala explicitamente de Sófocles no fim do texto (os amigos aparecem na "Electra" sofocliana). Excelente compilação de imagens!

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  2. Muito bom seu texto, me ajudou bastante a compreender melhor o conto do Machado de Assis. Parabéns e apenas um adendo: me parece provável que o Machado tenha se inspirado no afresco de Pompeia para compor alguns momentos da história. Assim como o Pílades dessa representação, Gonçalves também costumava manter os olhos fitos "em ontem", isto é, "quando os estendia ao longe".

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