O belo horrível e a negação do belo


A obra de arte passa por uma série de transformações ao longo de toda a sua história. Isso se condensa nos âmbitos mais diversos da concepção de sua noção. Não apenas o que tange a feitura da arte em si e os procedimentos de confecção da mesma se alteram, mas o nosso próprio entendimento dela, enquanto tal, se remodela constante e ininterruptamente ao longo da história da arte.

Por meio de uma análise da arte enquanto fenômeno hermenêutico, Hans-Georg Gadamer discorre, em Da atualidade do belo, acerca desse trajeto tortuoso e pouco linear, dos valores aplicados à arte e suas dadas mudanças, ou seja, da justificação da arte enquanto arte. Diderot, observando as pinturas de Chardin, foi captado pelo que enxergava de verdade naquelas naturezas mortas: a capacidade do artista em mimetizar a natureza, em evidenciar a carne aberta da raia sobre a mesa na La raie, de 1728. “É a própria carne do peixe, é sua pele, seu sangue”, ele diz.
 


O conceito do verdadeiro na obra de arte nos remete por sua vez ao próprio conceito do Belo nas artes. Tema que ganha uma nova significação na época de Diderot, com o surgimento da disciplina da estética, primeiramente por Baumgarten, e cuja relação é tida como indissociável por Kant, em suas análises do Belo nas artes. 
Mas após o século XIX, a justificação da arte transforma-se abruptamente. Por isso, Gadamer fala que “a nova situação artística vivenciada em nosso século tem de ser agora realmente considerada como a quebra de uma tradição una, cuja última onda tardia foi representada pelo século XIX”. Com as vanguardas artísticas do início do século XX, o que se compreendia por arte e a própria autocompreensão da arte sofre uma transformação avassaladora.
 
É assim, portanto, que Arthur Danto, em seu O abuso da beleza, reincide sobre a temática do belo nas artes. Se outrora o belo se valia como um dos atributos do objeto artístico e daquilo que o fazia ter valor de arte, com a instauração das vanguardas o que se tem é um rompimento de tudo isso. Como Gadamer, Danto interroga-se também sobre a justificação da arte, à sua forma. Trazendo à baila a questão do “fim da arte” e da reformulação dos critérios do que conforma, após a criação dos ready made, um objeto artístico como arte. Para Danto, portanto, não é possível aplicar às artes pós-vanguarda o conceito do belo.
Todos esses pontos, acerca das transformações do belo nas artes e dos novos valores que consolidam o entendimento dela podem ser observados, por exemplo, em uma produção fílmica dos anos de 1960, que insere um diálogo insistente não apenas sobre a produção artística de seu período, mas também uma crítica à produções anteriores, e que se resvale sobre duas abordagens específicas do conceito de belo nas artes inserem dentro do âmbito da produção moderna e de vanguarda.
 
Trata-se de Blood Bath, um filme cuja versão final, lançada e distribuída pela American International Pictures, sob produção executiva de Roger Corman, possui uma história da assinatura da direção que merece ser detalhada. A trajetória do longa inicia-se entre 1962 e 1963, durante a visita de Corman ao Festival Pula, na Iugoslávia, onde adquire os direitos de produção de Operacija Ticijan, filme cuja direção se encontrava nas mãos de de Radoš Novaković. Corman solicita que Francis Ford Coppola supervisione a produção e realize os diálogos em inglês para o filme, mas após sua insatisfação com o resultado final, direciona-se para Jack Hill, que aproveita cenas já filmadas e subverte o suspense em um horror.



Hill realiza novas filmagens com William Campbell, e completa em 1964 um filme de novo roteiro: Blood Bath. Apesar das mudanças, Corman não aprova o trabalho e Hill, que se encontrava em meio à produção de seu Spider Baby (1964) afasta-se do projeto, que é, enfim, direcionado para jovem estudante de cinema Stephanie Rothman. Ela remodela a história e metamorfoseia o personagem de Campbell em um vampiro. O filme é então lançado em 1966 como Track of the Vampire, com a co-direção Hill/Rothman e sem créditos para Novaković. Temos, portanto três filmes distintos: o suspense inicial de Novaković e seu relançamento americano como Portrait in Terror, a história modificada de Hill e o “rastro do vampiro” com as alterações finais de Rothman. Independente da versão, todos trabalham com a temática das artes. Nos concentraremos na última versão lançada, restaurada há poucos anos pela Arrow Film, Blood Bath, de 1966.
Composto basicamente por duas histórias principais, que se conectam pela relação de seus personagens com a arte, Blood Bath insere dois pontos sobre a produção de arte contemporânea, distintas entre si, mas que abordam problemáticas semelhantes no intermeio do debate crítico da história da arte do pós-vanguarda. O filme narra a história de Antonio “Erno” Sordi (interpretado por William Campbell), um pintor que reside na torre de uma igreja local (cujo sino tem importância crucial no desfecho da versão iugoslava), autor de nus imersos em terror, apelidados pelo público em geral como dead red nudes.

Antonio é um vampiro em conflito de alma. A encarnação de seu antepassado do século XV, Erno Sordi, também artista plástico, dotado de uma capacidade artística que beirava o sobrenatural, “maior que Rembrandt ou Ticiano”, como nos aponta o filme. Segundo o artista, “enquanto eles pintavam a carne, por vezes a alma, Erno Sordi ia mais a fundo. Ia além da alma”. Assim, sua capacidade de transmutar o sobrenatural na arte foi encarada como problemática pela Igreja quinhentista, acusando-o de feitiçaria, de sua pintura ser inspirada pelo Diabo. Julgado por um tribunal eclesiástico, foi condenado à morte e queimado na fogueira com o qual sucumbiram igualmente suas telas. Como no caso da obra de Chardin, ou das pinturas medievais, a verdade que permeia suas obras volta-se para sua vontade de trazer morte para as telas, enquanto que os demais artistas buscam nelas retratar a vida.
 

Os nus de Sordi são, portanto, imersos no máximo daquilo que Danto caracterizaria como “repulsa”. Suas pinturas não agradam a todos, sobretudo aos artistas beatniks que conflita, mas elas seduzem o público justamente pelo caráter mórbido da cena representada. Os retratos, em sua totalidade nus femininos, exibem fraturas expostas, membros mutilados, ferimentos à lanças e manchas de sangue sobre os cadáveres torcidos. A beleza do corpo feminino mescla-se com a sedução da carne, que se estende sobre a tela numa sensualidade duplamente ideológica e visceral.

A beleza horrível que ecoa das pinturas de Sordi nos remete a um momento claro da história da arte, no qual o apreço pelo horror, o repulsivo e o estranho mostram-se como temas caros. Artistas e escritores do decadentismo, sobretudo o francês, traziam para as artes plásticas todo um compêndio de indagações sobre o mundano e horrível que, ao contrário do que informa Danto, já se valiam como norma recorrente em 1873. O gosto pelo macabro e as questões da morte circundam, por exemplo, a poesia de Baudelaire. Em sua ode à carne putrefata, Une Charogne mistura-se o amor à mulher viva e a relação com o corpo decomposto na sarjeta.
 
Mas se por um lado há, em Blood Bath, essa representação do belo horrível, de uma arte que se preza dos cânones estéticos de um decadentismo iminente, por outro lado o filme igualmente apresenta uma vertente artística pouco voltada aos quesitos do belo, sejam ele harmonioso ou repulsivo.

Ele nos exibe, em contraste ao submundo de Sordi, o universo beatnik, os bares de artistas, as produções contemporâneas e uma série de discursos sobre a arte dos anos de 1960. Em uma das sequências iniciais, Hill nos mostra um grupo de artistas que se indaga sobre o que deve ser válido ou não em um objeto artístico. Em outras palavras, dos temas dos quais Gadamer e Danto dizem respeito: a justificação da arte. Assim, discorrem acerca do que para eles compõe o jogo: a arte deve ser, antes de tudo, inovadora. Na mesa do bar, observam atentamente um metrônomo com a imagem de um olho – uma espécie de réplica do Object to be destroyed (1923) de Man Ray – realizado por um dos artistas locais – Abdul (Sid Haig).
 

Max, o personagem mais conceituado por seus companheiros (e igualmente egocêntrico) critica a obra, apontando aos desprivilegiados intelectualmente, que aquilo é deveras formal. Em seguida, revela sua mais nova criação – o retrato de sua namorada: uma obra “formal”, que em nada difere das demais composições figurativas dispostas nas paredes do local. Os colegas indagam-no sobre como aquilo pode ser diferente, ao passo que Max responde-lhes:
– Vocês estão prestes a testemunhar uma ocasião histórica. A primeira apresentação pública de Pintura Quântica. Eu aperfeiçoei um instrumento. Uma arma líquida, pela qual sou capaz de aplicar as moléculas da física quântica em minha arte. Por causa da natureza paradoxal da teoria quântica, é necessário que a energia seja sobreposta numa imagem completamente formal. Isso é alcançado pelos meios da arma quântica. Estou prestes a surpreender o mundo! A arma quântica contém um pequeno projétil, carregado com pigmento, que ataca a tela com uma velocidade tremenda, mas devo lhes mostrar. A tela, mesmo agora, está pronta para receber sua fração de energia.

Max aciona uma pistola que expele tinta sobre a superfície da tela anteriormente coberta pela pintura figurativa, nomeando sua ação como “a primeira apresentação pública de Pintura Quântica”. Todos se espantam, sobretudo a namorada, cujo retrato tem a face maculada pelo jato amorfo de pigmento. Os demais à sua volta enaltecem a grandiosidade do ato presenciado e anunciam: “eu nunca vi algo parecido!”. A relação parece evidente com algumas produções artísticas daquele momento, como, por exemplo e talvez mais próximo, as performances da série Tirs, de Niki de Saint Phalle.



O ato de macular a “pintura acabada” com o uso do revólver mantém forte correspondência com as performances da artista, iniciadas poucos anos antes, em 1961. Max discorre um longo monólogo antes e depois de sua espécie de happening, no qual apresenta toda uma teoria envolvendo a concepção intelectual de sua obra e a originalidade contida nela. Os demais comparam os microfragmentos de tinta com o próprio Universo. Na parede atrás da pintura, diversas outras obras do grande Max são expostas: uma tela de veia expressionista abstrata, outra cuja única representação é uma gigantesca assinatura do artista – que não deixa de levar, no canto inferior direito, a assinatura propriamente dita.


Em uma sequência posterior, Abdul imprime uma carga de tinta no rosto de sua modelo e carimba a impressão da face em uma tela. Novamente ocorre um discurso sobre o que está sendo presenciado e que merece atenção. Na cena, Abdul ensina sobre sua produção:

Abdul: Desta forma, aplica-se ela diretamente na tela, eliminando a necessidade de uma mídia artificial, como o pincel.
Beatnik: Sim, eu vejo. O artista manipula diretamente a modelo sobre a tela, como ele manipularia um pincel...
Abdul: Claro! Isso é apenas um exercício. Obviamente, o próximo passo seria aplicar a técnica num estudo de corpo inteiro. Possivelmente um grupo.
Não há dúvidas que o jogo criado por Hill tem como inspiração obras como as Anthropométrie de l'Époque Bleue de Yves Klein (1960). Tal qual ele, Abdul orquestra sua criação, posiciona a modelo sobre a superfície a ser trabalhada, controla seus movimentos. A fala seguinte de Max “isso precisa de algo... a toalha para a modelo” expressa a ironia de ambas as cenas e a própria descrença no discurso que a arte promove, inclusive pelo artista que a concebe. Há uma crítica gritante nas produções de Corman e Hill ao que se refere tanto à grande arte nesse momento quanto a todos aqueles que se identificam como alheios a essas produções – os beatniks – que acabam (no filme) mimetizando os mesmos passos e atitudes da corrente principal da arte. Tornam-se artistas de ego inflado, cujo discurso representativo da obra vale mais que a produção por si só.

O filme dialoga com questões atuais – os caminhos novos da arte, as inúmeras tentativas de chocar o público, e mesmo sobre a interação deste com o que é produzido no circuito artístico (se pensarmos, por exemplo, na destruição do “objeto indestrutível” de Man Ray, uma obra vista pela nova vanguarda, como já ultrapassada – muito formal).

As obras de Sordi, em contrapartida, são vazias de um discurso de pretensão intelectual. Os interessados em arte que frequentam o lugar não se agradam pelas produções de Max, Abdul e os demais. Eles buscam uma obra vibrante e encontram isso nos quadros macabros de Sordi. Seus nus representam uma mescla de erotismo e horror. Mulheres assassinadas, carnes dilaceradas e ossos em exposição. É uma vontade de converter a violência em espetáculo.

A produção de Sordi nos remete ao próprio passado dele como artista imortal. Como contemporâneo do século XV e que passa pelos próximos 600 anos de produção das artes, Sordi presenciou a transformação do belo nas artes plásticas. Visto como um “artista fora de seu tempo”, ele soube trazer o belo harmonioso e os ideais de sua época, bem como seguir correntes posteriores e absorver aquilo que mais lhe valesse na arte. Em seu ateliê, no topo da torre da Igreja, estão dispostos os quadros mais diversos, além dos nus em que insere a crueldade. Naturezas mortas à la Morandi, uma tapeçaria que remete a Gustave Doré etc. Um pouco como quando Walter Pater, descrevendo a Gioconda de Leonardo, em O renascimento, afirma que “todos os pensamentos e a experiência do mundo estão ali gravados e moldados”. Como ela, a musa de Sordi “é mais velha do que as rochas em meio às quais está sentada; como vampiro, ela morreu várias vezes e aprendeu os segredos do túmulo; desceu ao fundo dos mares e guarda consigo os seus crepúsculos” e, como tal “pode figurar como encarnação daquela imaginação antiga e como símbolo da ideia moderna”.

As obras dos beatniks, da mesma forma, igualmente se voltarão para o momento nos quais se inserem. Se a arte já não se vale mais do belo, como afirma Danto, tampouco os referenciais artísticos contidos no filme, a arte que eles produzem se faz valer de novos meios de significação e, segundo Max, “além de seu valor como decoração, a pintura quântica possui também um papel social”. No jogo da arte dos anos 60 de Blood Bath, até os consumidores mais conservadores da arte preferem o instaurado belo – por mais grotesco que seja – das obras de Sordi, que as composições abstratas, quânticas e antropomórficas de Max e sua trupe. O interesse no belo, se mostra novamente como um pressuposto no âmbito artístico.

É interessante, no entanto notar como essas questões são postas no filme de Hill e Rothman. Os mundos artísticos presentes no filme, diversos e completamente opostos, não se relacionam uns com os outros. No entanto, por mais que a arte contemporânea ao filme seja vista de forma jocosa e seus pressupostos conceituais sejam postos em jogo por Hill, ao final quem prevalece é essa arte por excelência. Ou, como diz Gadamer, “Quando andamos por um museu e entramos nas salas voltadas para o desenvolvimento artístico mais recente, deixamos verdadeiramente algo para trás”. O vampiro-artista Sordi sucumbe junto com suas modelos em cera: é aprisionado por aquilo que qualifica sua arte: o horror é superado por aqueles que a refutam: os próprios beatniks.
 

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