Terríveis maternidades

Mães e bebês formam um binômio de fragilidade e proteção. Isso torna o tema do massacre dos inocentes talvez o mais hediondo na história das artes.

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Fra Angelico fez o seu, numa oposição terrível - a mesma que empregaria Goya em seu 3 de maio, e Eisenstein na escadaria do Potemkine - soldados avançam, calmos e decididos, sobre a multidão desesperada e agitada, composta por mães que se debatem, em desordem. No primeiro plano, os vestidos das duas mulheres são como que esculpidos, pétreos, imobilizando o gesto de dor. No fundo, a arquitetura é regular e compassada. Do balcão, no alto, Herodes, com cetro e coroa, comanda, ao mesmo tempo em que assiste ao espetáculo. Alguns iconógrafos têm assinalado o papel dos mármores nas pinturas do quattrocento: abstratos, eles fariam alusão a Deus, que não pode ser representado. Em todo caso, no jardim suspenso de Herodes há uma videira, sem frutos nem folhas. Evoca um futuro em que frutificará com o sangue de Cristo (1451-52, Museo di San Marco, Florença).




Em 1590, Cornelis van Haarlen pinta o seu Massacre (Rijksmuseum). O artista parece mais interessado em exibir os traseiros nus e luzidios dos soldados do que em expor o terror da cena (Michel Laclotte uma vez mencionou "esses maneiristas flamengos que se contorcem para chupar o dedão do pé"). O que me chama a atenção, no entanto, é o fato de que um grupo de mães consegue vencer, derrubar, e dominar um soldado: é o único caso que conheço.

Outros artistas investem no furor genérico. Giovanni Pisano, por exemplo, na igreja de Sant'Andrea, em Pistoia (1301), concebe a cena com uma pulsação violenta de corpos em conflito: mesmo as três mães, em baixo do relevo, sentadas, chorando os filhos mortos, conservam a vibração da brutalidade que perpassa. Destacam-se, no canto esquerdo, o soldado que segura uma criança pelos pés e, no direito, Herodes que ouve seus sinistros conselheiros.




Tintoretto prefere integrar tudo num furacão catastrófico. A iluminação, a sombra, os panejamentos, os gestos, as pinceladas, a incerteza do espaço unem a imagem num fluxo. Muito mais do que os indivíduos, são esses elementos que fazem do quadro o lugar da energia a mais brutal (1582-87, Scuola Grande di San Rocco). 




Porém,  Guido Reni ensina que o sentimento de comoção brota mesmo é dos casos individuais. No seu massacre, escolhe o formato vertical que estreita a cena. Simplifica o fundo, escurece as arquiteturas, e faz ressaltar os personagens: são inesquecíveis a mãe que grita e o soldado que lhe puxa os cabelos, assim como aquela, admirável, que se enrola num manto azul e foge para a direita (1611, Pinacoteca Nazionale, Bologna).




Em 1632, Poussin radicaliza. Centra seu Massacre num confronto singular. A mãe e o carrasco estão unidos por um gesto que forma um oval tenso: enquanto a mão da infeliz tenta impedir a espada de se abater, o soldado busca afastá-la, puxando-lhe os cabelos. No primeiro plano, a brutalidade do pé que esmaga o peito do menino. Atrás, indo para a direita, outra mãe foge, lançando um grito. A dinâmica da composição que une os personagens ressalta diante da arquitetura rigorosa e ortogonal (Museu de Chantilly).


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No século 19, Léon Coignet inventa uma prodigiosa disposição para o tema. O massacre está oculto do espectador, no fundo, atrás de um arco. Na penumbra, uma mulher foge, descendo os degraus de uma escada, com os filhos nos braços, perseguida por um soldado. E, no primeiro plano, encolhida, enrolada em um manto, o personagem principal: a mãe, com seu filho nos braços, escondendo-se no ângulo de uma arquitetura em ruinas. Ela tapa, firme, com dois dedos, a boca da criança. Estamos em 1824, mas é um enquadramento de cinema: nós, os espectadores, vemos o que o perigo não deve descobrir. Está criado o suspense. (Museu de Rennes)




No meu espírito, esse quadro de Cogniet se associa a uma tela de Alex Katz (1967), retratando a esposa do pintor, Ada, e seu filho, Vincent. Não estamos na violência dos massacres, mas há, nos olhares, inquietação. A composição recorta e isola os rostos: somos só nós, contra todas as ameaças.


Alex Katz. Ada and Vincent



Há violências que não são humanas. Em 1918, Egon Schiele pintou um autorretrato, nu, com sua esposa Edith. Imagem intranquila. Os corpos ondulam em relevos acentuados, a epiderme brilha em cores estranhas sobre um fundo escuro e perturbador. Quando Schiele descobriu que sua esposa esperava um bebê, acrescentou uma criança entre as pernas dela. Mas, no dia 28 de outubro, Edith, grávida de seis meses, morre, vítima da gripe espanhola, que ataca e leva também Egon Schiele, dia 31 de outubro de 1918.





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