Ondas do ukiyo-e



Retrai-se o mar, as espumas se levantam. Pássaros se misturam em movimentos que lembram uma luta ou dança extravagante. Carimbada no papel, a imagem conserva a energia das forças representadas, tanto as de elementos naturais quanto as do artista gravador. À distância, no lado esquerdo da composição, só um elemento está imóvel: é o monte Fuji, assistindo a tudo como um sábio que observa as crianças.

Hokusai, O Fuji desde o mar, 1834-5

A tradução de ukiyo-e é desenho do ukiyo, desenho do mundo flutuante. Antes do século XVII, ukiyo era um conceito budista, cujo sentido podia ser “este mundo de dor”, ou secundariamente “este mundo efêmero”. O conceito se transforma e passa a ser usado no intuito de valorizar o prazer, conforme expressam os versos do monge poeta Asai Ryōi em Ukiyo monogatari (Contos do mundo flutuante), de 1661:

viver apenas pelo momento presente,
voltar toda a nossa atenção aos caprichos
da lua, à neve, à cerejeira
em flor, às folhas da nêspera, cantar,
beber vinho, ter prazer em apenas vagar,
vagar sem curar nem um pouco da
miséria que nos olha no rosto,
recusando-nos em deixá-la nos desencorajar,
ser como uma abóbora que flana
sobre a corrente do rio. Isso
é o que chamamos
o mundo flutuante.

Não é de admirar que, a partir do século XIX, em mais uma transformação do conceito –fundindo-se agora à gravura japonesa –, o ukiyo-e tenha atingido a Europa como um tsunami e marcado a arte ocidental de forma decisiva e indelével.

Mary Cassatt, La toilette, 1890-1, ponta seca e água-tinta

Até hoje, ondas menores prosseguem em refluxo, celebrando o fascínio pelas estampas japonesas. Mostras e retrospectivas se beneficiam da abundância dos exemplares de excelente qualidade. Prevalece nelas a consagração dos autores máximos, Hokusai, Hiroshige e Utamaro, este último o mais apaixonado dentre os retratistas de mulheres.

Capa do catálogo de exposição no Palazzo Reale em Milão, 2016

Utamaro, da série Combinando flores..., c.1801

Embora menos famosos que Utamaro, há mestres que o ombreiam, de certo modo superando. Torii Kotondo renova o gênero com o belíssimo Penteando os cabelos.

Torii Kotondo, Penteando os cabelos, 1929

A gravura de Kotondo teve a reprodução e a difusão proibidas no Japão nos anos 30 por ter sido considerada subversiva. De fato, para além do nu mais aberto (embora não mostre as partes íntimas), a mulher possui uma introspecção até então rara no ukiyo-e. Note-se ainda a profunda transformação no estilo, derivada da admiração reversa, isto é, do Leste pela arte do Oeste, que pode ser vista também no trabalho de Itô Shinsui.

Itô Shinsui, Lavando os cabelos, 1953

Outros nomes vêm se destacando e talvez Kuniyoshi seja o que mais se tem exaltado. Conhecido pelas gravuras de samurais e de estranhas caricaturas, além de gatinhos fofos, não é difícil entender seu atual sucesso crescente. Algumas imagens têm parentesco com os animes contemporâneos, enquanto outras, sobretudo de lutas com monstros e seres mágicos, se ligam às mitologias de Ultramen, Power Rangers e afins.

Capa do catálogo de exposição no Museo della Permanente, em Milão, 2017-8

Kuniyoshi, Polvo, da série Caracteres caligráficos formados por gatos, c.1842

Kuniyoshi, O gato transformado em mulher

Kuniyoshi, Dá medo, mas é realmente uma boa pessoa, c.1847

Kuniyoshi figurou também mulheres e parece relevar nelas qualidades que os colegas, em geral, não realçam. Vejam-se, por exemplo, o espírito de luta e a tenacidade da personagem principal da lenda japonesa das Jóias das Marés, bem como uma espécie de versão oriental e molhada da nossa cristã Madalena penitente.

Kuniyoshi, A princesa Tamatori rouba a joia sagrada do Palácio do Dragão, 1853

Kuniyoshi, Hatsuhana em penitência na cachoeira Tonosawa, c.1842

Boa parte das obras reproduzidas aqui pode ser vista na ótima exposição Giappone, storie d’amore e guerra, até setembro de 2018 no Palazzo Albergati em Bolonha.

Ikeda Terukata, final do século XIX


Sites das mostras:
http://www.mondomostreskira.it/archivio/hokusaimilano/
http://www.kuniyoshimilano.mondomostreskira.it/
http://www.palazzoalbergati.com/giappone-storie-d-amore-e-di-guerra/

Comentários

  1. Impressionante. Um trabalho mais incrível que o outro. E uma pena que essas imagens ainda hoje tenham uma circulação tão restrita entre nós.

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    1. Felizmente muitas - e todas do post - estão disponíveis na internet :)

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  2. Sensacional! A arte e suas potencialidades.

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