Sobrenatural

O cinema americano caracteriza a igreja católica de modo muito nítido. Não me refiro aos filmes profundamente religiosos como os de Scorsese, mas à produção corrente. Ela prolonga a tradição literária que o romantismo fantástico dos romances góticos criaram no século 18 britânico, e que autores de língua inglesa prolongaram ao longo dos séculos 19 e 20.

 

Tais produções são o fruto de um olhar que vem de fora. Ele faz surgir uma igreja católica vista com medo e com fascínio por protestantes, habituados à transparência e a imediatez do texto, e inquietos pelo caráter reservado, erudito, protegido, do mundo católico.

Esse olhar se assusta justamente com o que não vê: nos conventos, em que os monges se ocultam do olhar leigo, a imaginação estimulada faz ocorrem coisas terríveis: orgias satânicas, rituais depravados, perversões necromânticas. 

O mundo católico é percebido como menos religioso do que mágico. Liturgias de invocação, figuras como o anticristo, força das imagens e dos símbolos. Abracadabras sobrenaturais, eles assombram indivíduos, mas podem mesmo ameaçar a existência da humanidade inteira. São feitos por homens ou mulheres que usam roupas estranhas, falam latim e impõem-se disciplinas enigmáticas, entre elas, o celibato.



Arnold Schwarzzenegger em End of Days, de Peter Hyams, 1999



Nesse gênero, o diabo tem uma presença constante e assustadora. O cinema explorou muitíssimo o ritual de exorcismo: uma lista na plataforma IMDB enumera nada menos do que 45 títulos versando sobre o tema. O exorcismo católico é bem diferente do praticado por neo pentecostais em programas de televisão. Obedecem a liturgias bem regradas, com etapas complexas e misteriosas. Os protocolos para a exterminação definitiva dos vampiros é bem próximo dos exorcismos e, como se sabe, fazem parte do arsenal para afugentar os aristocratas sugadores de sangue a cruz e a água benta.




Dentro do universo anglo-saxônico, a igreja católica é mina inesgotável para pavores.

Na França, o enfoque sobre a igreja católica é outro. Funda-se numa tradição racionalista, seja atacando-a, como em Voltaire e seu "Écrasons l'infâme!" ou como nos romances Lourdes e Rome, de Zola; seja articulando-a com projetos político-sociais, como Lamennais e Lacordaire, ou com a ciência, como Teilhard de Chardin.

Em A aparição, filme francês de 2018, o diretor Xavier Giannoli o situa numa fronteira tênue entre a fé e a racionalidade. Constrói um verdadeiro whodunit, uma busca detetivesca. É bem longo, 2hs e 40, mas o diretor sabe lidar com o tempo, sem precipitação, e sem que o interesse deixe de se sustentar.




Um reporter de guerra é chamado ao Vaticano. Um cardeal lhe dá a missão de pesquisar, junto a uma comissão de inquérito da própria igreja, a verdade sobre uma aparição da Virgem Maria que ocorreu no sul da França.

Ao contrário dos padres que compõem também a sindicância, o reporter quer obter, de modo objetivo, todos os dados possíveis para levá-lo a uma conclusão isenta. Os religiosos são hostis a ideia de manifestações divinas, que atraem multidões. Estão convencidos de que se trata de pura histeria coletiva, liderada por uma jovem mistificadora - a prodigiosa Galatéa Bellugi.






"Em suma, ela podia escolher entre ser cabeleireira ou ser santa", zomba um dos religiosos investigadores. A igreja católica prefere não validar um milagre verdadeiro do que venerar um falso. Ela impõe atitudes de algum modo esquizofrênicas: verificar pela ciência, por dados concretos, pela razão, aquilo que pertence ao campo da fé e do sobrenatural.




A descoberta do percurso detetivesco esclarece o mistério dos acontecimentos reais num twist final, mas a fé e as crenças no sobrenatural são tratadas com respeito. A busca do reporter é ao mesmo tempo objetiva e espiritual, com um olhar que insiste nas provas concretas, mas que percorre também uma busca interior.

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