Sem Amor, Van Gogh (ou o injustiçado Doutor Gachet)





Justiça seja feita ao doutor Paul Gachet. O simpático senhor de olhos melancólicos, que parece estar se dissolvendo nos dois retratos feitos por Vincent van Gogh em 1890, é uma das figuras mais difamadas na mitologia do artista holandês. Apesar de ter cuidado do pintor nos meses que antecederam seu suicídio, o pobre doutor tem sido maltratado por filmes e livros que ora o pintam como um artista frustrado, ora como pai ciumento; ou, pior: como um médico frio, insensível, pronto para podar as inclinações artísticas de van Gogh com sua medicina moderna, psiquiátrica, controladora, burguesa.

Em primeiro lugar, não há nada que permita concluir que o doutor Gachet tenha levado a sério a ideia de ser um pintor profissional. Especulações aqui e ali são possíveis, é claro, mas nenhuma delas leva à conclusão de que ele tivesse inveja de outros pintores. Muito pelo contrário; além de Vincent, o doutor também era bom amigo de Pissarro e Cézanne, de quem tinha pinturas em sua coleção. Ora, esses pintores – a julgar pelo gosto corrente – eram pouco dignos de inveja. Cézanne só conheceu a celebridade no final da vida e Pissarro mal conseguia se sustentar. De Vincent, bem, não havia muito a invejar.


                                               


Também circula por ai, em um filme de animação bastante popular, que o pobre doutor teria ciúme não só da profissão de seu paciente, mas também do relacionamento do pintor com sua filha, Marguerite Gachet. A hipótese é descabida. Apesar de ter feito uma pintura da moça ao piano, há pouquíssimas menções à filha do doutor nas cartas do artista. O filme chama mais atenção por ser uma animação com pinturas do que pela história. Ainda assim, confesso que já estava com sono após 20 minutos: as pinceladas de van Gogh, quando se mexem, são hipnóticas. A fantasiosa paixão de van Gogh pela filha do doutor também aparece em outro filme, igualmente ruim, de Robert Altman, chamado Vincent & Theo. Nele, o artista é retratado como um garanhão incompreendido que não hesita sequer em flertar com a cunhada, como se fosse impossível para qualquer mulher não estabelecer uma tensão sexual instantânea com o pintor. Nada mais longe do soturno Vincent.

A terceira via de difamação do doutor - essa mais poderosa - diz que Gachet foi um médico que limitou a criatividade do artista e contribuiu para seu suicídio. Ela está em grande medida ancorada no livro de Antonin Artaud, O Suicídio da Sociedade, de 1947. Artaud, ele próprio um paciente psiquiátrico, pinta Gachet como um vilão inveterado, frio o bastante para não socorrer de imediato o artista após o tiro no peito que levou à sua morte. Pura injustiça. A terapia de Gachet era a mais heterodoxa possível e se resumia a: pintar. Além de projetar suas próprias experiências como paciente no pintor, Artaud não poupa nemTheo van Gogh, que surge como um homem interessado apenas em dinheiro e indiferente ao irmão, ainda que o tenha sustentado a vida toda e também sofrido de problemas nervosos.

Marguerite Gachet ao piano


O fato é que a mitologia que envolve van Gogh se emancipou dos dados concretos em boa parte de seus vários livros e filmes, como bem demonstrado pela socióloga Nathalie Heinich, no livro La Gloire de Van Gogh. Para se ter uma ideia da relação entre pintor e doutor, nada melhor do que buscar as cartas do artista. Nelas, Gachet é descrito como “um amigo já pronto e algo como um novo irmão – tal nos parecemos fisicamente e moralmente” ou como “alguém mais doente do eu,..., pelo menos tanto quanto”. Longe de ser um vilão, Gachet era um bom amigo, cúmplice de seu paciente na melancolia e no sofrimento; nas palavras de van Gogh: “quando um cego conduz outro cego, não caem os dois no fosso?”

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