Quem está por trás da morte? Um ideograma visual enigmático.

Bizarríssimo, o pintor.
Ele fez um tríptico em que figuram dois doadores. A parte central se perdeu; conservaram-se os painéis laterais.




Neles, estão figurados os doadores, dos quais sabe-se apenas que talvez se chamassem Nicolau e Godeliva, porque estão acompanhados de seus santos padroeiros. 

Pode ser que Nicolau fosse um mercador dono de barcos: o milagre de São Nicolau é figurado no buquê de trigo que  a mão esquerda segura. No fundo, ao lado de uma grua movida a músculos das pernas, dois homens descarregam sacos de trigo do navio que o santo protegeu. 

Santa Godelive, altiva, com sua echarpe esvoaçante, protege a esposa, e seu martírio (da santa, não da esposa!) aparece no fundo, diante de uma torre e ao lado de uma cidade imaginária.

Pintura soberba, sem dúvida. Mas não é isso que a faz estranha.
Aqueles, acima, são os painéis internos do tríptico.
Estes, abaixo, são os externos.




Friedländer, em seu Early Netherlandish Painting, escreve sobre Provoost: "Há mestres que crescem em nossa estima na medida em que mais adentramos nas suas criações. Provost não está entre eles, ainda assim, ganha em estatura na medida em que o conhecemos. Sua obra é cheia de surpresas. Ele próprio se orgulha de sua originalidade em conhecimentos pictóricos. (...)"

"Ele é esperto. Isso pode parecer elogio duvidoso para um pintor, já que o situa num contexto intelectual e mesmo literário. O que se quer dizer aqui é que a imaginação de Provost gera, em abundância, idéias pictóricas significativas."

A observação de Friedländer, que parece diminuir a arte de Provoost, é curiosa: por que ele não cresceria em nossa estima, se adquire estatura maior quando o estudamos? Seja como for, Friedländer vê de modo exato o caráter "esperto" de Provoost. Ele é um "engenhoso" e um excepcional narrador, como testemunha o seu díptico do Julgamento de Cambises.

Neste caso, não hesitou em pintar uma cena única, que se desenrola em largura, no verso dos painéis verticais representando os doadores. A composição se interrompe de um painel para o outro, mas se completa em ambos para formar a cena de A morte e o avarento, que é o título da obra.

Se os detalhes iconográficos não são claros,  a significação geral sugere um memento mori. Um homem rico presta contas à morte, que dispõe (ou recolhe) moedas,  com minúcia, sobre a mesa.





As riquezas desse mundo não são nada se a contabilidade da alma não for justa. Jacob Soll, economista e filósofo norte-americano,  fez uma observação sobre esse quadro que conclui seu livro The Reckoning: Financial Accountability and the Rise and Fall of Nations (2014): "Talvez a salvação de nossas trôpegas sociedades hiper-financeiras esteja não apenas na contabilidade pessoal e disciplinada de Josiah Wedgwood ou nas abordagens históricas e morais dos pensadores econômicos como Adam Smith ou, de fato, na análise dos manipuladores de números atuais, mas também nas antigas lições de pinturas como A morte e o avaro, de Jan Provoost, que ilustra tão poderosamente a importância da manutenção e gestão financeiras, fundamentando-a em devoção, ética, política cívica e arte".

À esquerda, de chapéu, por trás do manto da morte, está um personagem que, olhar severo,  chama nossa atenção com um gesto para a cena.


A interpretação mais plausível e aceita, é que se trata do retrato do próprio pintor, Jan Provoost, o autor da alegoria moral, do memento mori. O grande historiador da arte inglês Sir Martin Conway publicou no número 187 do Burlington Magazine (outubro de 1918) uma hipótese importante.

"Entre as pinturas aceitas hoje como obra de Jan Provost há uma de caráter muito peculiar no museu de Bruges. O que ela significa ninguém sabe mas, seja como for, mostra um negociante robusto no seu escritório com seu livro e sacos de dinheiro sobre a mesa diante dele. Do outro lado da mesa está a morte que, ou dispõe, ou recolhe moedas e parece estar aceitando um recibo (agora apenas em parte legível) assinado por Jan Lanckart, sem dúvida o comerciante em questão. Por trás da morte, há um grave individuo olhando e apontando com um dedo. Uma suposição natural é que este seja o retrato do pintor. Pode não ser ele, mas parece muito o tipo de autorretratos que pintores por vezes introduziam nos fundos de suas pinturas".

Sabe-se que Jan Provoost foi retratado por Dürer por duas vezes, uma em carvão, outra em ponta de prata, como o próprio Dürer assinala em seu diário.

Em seguida, Conway anuncia sua descoberta: "Durante muito tempo tive a sensação que conhecia essa cabeça e procurei entre os desenhos de Dürer nos seus dias em Antuérpia para ver se algum deles se parecia. Nenhum apareceu. Recentemente, no entanto, quando examinava seus desenhos do ano de 1518, (ou com data atribuída a esse ano) eu tropecei nele. Está no Museu Britânico  (Lippmann, No. 284), e as reproduções aqui publicadas permitirão ao leitor ser ele próprio juiz da semelhança ."



Fiquei convencido: o desenho de Dürer, no Museu Britânico, é mesmo o retrato de Provoost. Mas a maioria dos especialistas hoje não acredita na semelhança.

Esse pintor esperto foi também o autor de uma estranha alegoria, um ideograma visual enigmático, cuja disposição dos elementos, fragmentados, em situações deslocadas, associam-se de modo inesperado.


A obra está hoje no museu do Louvre. Geert Warnar, da Universidade de Leiden (in Image and Incarnation : the early modern doctrine of the pictorial image / obra coletiva  publicada por Walter S. Melion e Lee Palmer Wandel, Leiden), associa essa pintura à Visio Dei, a visão de Deus, objetivo dos místicos medievais.

Warnar procura os escritos dos místicos para compreender a charada visual de Provoost. Ele busca nos sermões do dominicano do século 15, Eckhart de Hochheim, ou mestre Eckhart, que escreveu: "O olho no qual vejo Deus é o mesmo no qual Deus me vê".

Recorre também a Nicolau de Cusa, em sua referência a um retrato de Cristo que deve ser usado como exercício espiritual. Esse retrato segue o espectador com os olhos e, na reciprocidade dos olhares, ambos se enxergam.

Warnar traz a relação da fascinante reciprocidade encontrada no célebre autorretrato de Dürer que se evidencia na comparação com o Cristo abençoando, de Memling.



O estudo de Warnar tem erudição e fundamentação impressionantes. Não há dúvida que a pintura de Provoost brota de um meio místico altamente intelectual. Mas não se deixa decifrar, pelo menos não completamente. Sua imagem, para nós insólita, surreal (com perdão pelo adjetivo gasto), atravessa os séculos com seu mistério. Segue, é bem provável, um programa específico que se perdeu. É um unicum, ou seja, não possui equivalente na história da pintura.

(O universo, globo e disco ao mesmo tempo é uma íris azul, no centro da qual está a terra. Em volta dela giram o sol e a lua. Ela, a terra, é o ponto médio do quadro.)


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