Uma padroeira das lésbicas ou o dia gay dos namorados

Outro dia, eu estava examinando, numa reprodução boa, o Tríptico de Adriaen Reins, pintado por Memling em 1480 e que está em Bruges.



A dor é ali suave, silenciosa e elegante, sem deixar de ser tremenda. No painel central a inclinação para a direita de Madalena, de Maria e do Cristo é sustada por João Evangelista. Por trás da Virgem, o lenho da cruz sobe ao céu, e a escada que serviu para baixar o corpo do crucificado sugere agora o caminho para o alto. Aos pés dele, num vazio fulcral, os cravos e a tenaz, agentes quietos da tortura. No fundo, de um lado, o perfil de uma cidade que evoca a velha Bruges , do outro a longínqua imagem da deposição diante de um rochedo.

O reverso dos painéis apresenta duas santas sob uma janela flamboyant.



A da direita é Santa Maria Egipcíaca, cujo aspecto lembra o da Madalena, nua, se cobrindo com os cabelos e o manto, e trazendo nas mãos três pães simbolizando a eucaristia e a santíssima Trindade.

Santa Maria Egipcíaca - França - século 16

A da esquerda carrega uma cruz que sai, em trompe-l'oeil, atravessando as rendas de pedra góticas. A legenda diz: Santa Wilgefortis.




Eu nunca tinha ouvido falar. Que diabos seria essa santa?

Foi fácil achar com uma busca na internet. Tem outros nomes, muitos, como Liberata, e Uncumber, na Inlaterra. Uncumber pode ser traduzido como "sem impedimento".

É uma história extraordinária. Filha de um rei português nos tempos do paganismo, ela foi destinada a um casamento que a repugnava. Ou, em outra versão, busca causar repulsa em de seu pai, que a queria violar. Para tanto, pediu a ajuda de Deus, que lhe faz crescer uma barba! O que desencorajou imediatamente qualquer desejo masculino e sua alma foi salva. Wilgefortis terminou crucificada, seja por desobediência, seja por acusação de feitiçaria.

Memling apenas escureceu seu rosto, dando-lhe feições duras, bem diferente das formas delicadas que Maria Egipcíaca apresenta. Mas, se não soubéssemos dessa história, seria difícil perceber tais aspectos.

Há outras imagens da santa, muito mais expressivas:




No dia 20 de julho de 1999, consagrado a Wilgefortis, as lésbicas da Inglaterra, onde a santa é muito venerada, celebraram pela primeira vez o amor em nome da santa. 




Descubro uma passagem de Thomas More, extraído de seu Diálogos das heresias (1529): "Santa Wilgeforte: a pobre se contenta, ao que parece, que levem aveia para ela. Por que aveia? Será que é preciso arranjar o cavalo que servirá de montaria ao mau marido para mandá-lo ao diabo? Porque é, ao que parece, esse o objetivo de quem recorre a ela: tanto que as mulheres mudaram seu nome: ao invés de Wilgefort, elas a chamam de Uncumber, confiantes de que, por um punhadinho de aveia, ela as tornará "desimpedidas" de seus maridos."

Talvez ela se torne também a padroeira das drag.


Imagem popular alemã, séc. 19


Conchita Wurtz é uma de suas grandes representantes hoje em dia.





Ps. Ao que parece, a "histórica" Wilgefortis teria se deixado morrer de inanição, causada por jejum muito prolongado. Nesse caso, ela seria a padroeira dos anoréxicos.

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