As estátuas são eróticas. As estátuas são fatais.


Trabalhando em mármore ou O artista esculpindo Tânagra, de Gérôme (1890): não deve haver pintura mais prosaica do que essa. O modelo, bem rígido na sua pose de convenção, tem uma expressão não muito espiritual nem inteligente. A escultura, sendo terminada, mostra dignidade maior. Mas a posição paralela e repetida de ambas introduz alguma coisa de grotesco na demonstração. 

Impressiona, porém, que a estátua realizada tenha adquirido uma grandeza que a pintura não deixa suspeitar.




O caráter demonstrativo da tela está ligado à preocupação de Gerôme em introduzir a policromia nas esculturas - tal como o faziam os gregos antigos, e que é bem percebida nas estatuetas em argila da Grécia antiga, feitas em Tânagra. Parecia-lhe que, assim, a verdade da alma migrava melhor para o corpo de pedra.

Gérôme coloriu delicadamente sua escultura nos cabelos, nos olhos, nos lábios e nos mamilos, um realismo que chocou. Nos tempos do purgatório da arte dita acadêmica, a obra ficou esquecida e, suponho, mal conservada. Quebraram-se algumas partes da pequena figura apresentada pela mão esquerda, e o colorido desbotou bastante.

Melhor preservada nos seus matizes do que o original do Musée d'Orsay, é uma cabeça dessa escultura, pertencente ao museu de Santa Barbara, na Califórnia.




Ou se pode perceber um pouco conforme a luz da fotografia.




Gérôme representou, no fundo de seu ateliê, um de seus quadros: Pigmalião. A história do escultor grego apaixonado pela sua obra, que adquire vida graças a esse amor, tem forte sentido simbólico: a relação entre a presença perturbadora das formas e a vida nelas contidas.




Não vou me enredar pelos numerosos episódios que contam a atração exercida pelas estátuas, desde a Vênus de Cnido, que atraiu tanto um jovem grego a ponto de levá-lo a fazer amor com ela, até o ilusionismo de certas práticas (Cellini encenando um claro-escuro com tochas para Francisco I, ou os turistas do século XVIII, visitando o Laooconte, à noite, sob luz artificial, para obterem melhor a ilusão da vida), ou ainda os episódios literários que nos falam de esculturas adquirindo vida (a estátua do Comendador, no Don Juan; A Vênus de Ille de Prosper Mérimée, e tantas outras).

Centro-me nesse aspecto que Gérôme tratou em vários quadros: a relação íntima, quase mística, entre o modelo e a obra. Isso porque assisti novamente, em ótima cópia, uma obra-prima: La diosa arrodillada (A deusa ajoelhada) de Roberto Gavaldón (México, 1947).





Não sei de outro melodrama que tenha chegado a tal estado de transe. Nele, o desejo, a atração sexualizada sobe para a mais alta voltagem, fundindo as formas femininas na estátua e na mulher.




A estrela, María Félix, que teve fama européia (French can-can, de Jean Renoir) e foi diva latino-americana, estava no apogeu de sua beleza.




A força invisível do desejo e do vínculo criado entre um casal, é captada pela câmera, assim como os poderes eróticos intercambiáveis entre a escultura e o corpo feminino. Nudez por tabela.



A formidável iluminação e a genial fotografia sabem acariciar as formas. Maneira de mostrar a nudez  perturbadora de modo direto: a estátua se torna o substituto da mulher.


Expor o corpo liso, ideal, sob a chuva, sugere o contato com a pele.



O enredo é completamente inverossímil, com viravoltas e situações incompreensíveis. Mas que importa a verossimilhança? Encontramo-nos em plena angústia erótica. Os absurdos lógicos nos encaminham mais facilmente para o hipnótico, para o onírico. Não duvido que os surrealistas amassem esse filme. Por vezes espantosamente freudiano.




As roupas de María Félix denunciam uma extravagância suntuosa e fatal. Os cenários, de um chique 1947. Eles são importantes para a atmosfera do filme.




Uma obra-prima, afirmo com muita convicção.

Eu o vi pela primeira vez em 2002, num ciclo apresentado durante o Festival de Cinema do Rio de Janeiro, no Instituto Moreira Salles. Escrevi, naquele momento, um textinho sobre a grande produção dos filmes mexicanos.

São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002 


Ponto de fuga

Que viva México!Jorge Coli
especial para a Folha
Quem tem mais de 50 anos lembra-se dos filmes mexicanos que invadiam as telas brasileiras. Faziam tanto sucesso quanto os de Hollywood e, às vezes, mais ainda. Eram melodramas terríveis: a expressão "parece um filme mexicano" servia para designar situações exageradas de sofrimento sentimental. Nos países hispano-americanos, a palavra "mexicanada" tinha o mesmo sentido.

Com o passar dos anos, as cópias tornaram-se raras, e ficou difícil saber como essas obras teriam resistido ao tempo. O Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que terminou há pouco, trouxe 11 desses títulos. Eles figuraram discretamente no conjunto da mostra, mas formaram, na verdade, o que de mais precioso se apresentou ali.

São filmes que deveriam figurar no panteão dos maiores e melhores. Muitos foram dirigidos por Emilio "El Indio" Fernández. Sua câmera é capaz de grandeza, densidade e comoção. Ela impõe, às imagens, dignidade e altivez. Seu fotógrafo, Gabriel Figueroa, transfigura rostos e corpos femininos, idealizando-lhes a beleza perfeita. A narração flui, segura e intensa, os diálogos embebem-se de poesia elevada. Números musicais se integram na trama, sem artifício ou quebra, acentuando a espessura dramática.

Alguns historiadores compararam Fernández a Eisenstein; talvez ele lembre ainda mais John Ford, pelo sentido épico do drama humano. Fernández possui, entretanto, uma originalidade que é sua, e essas comparações não o subordinam. Indicam apenas a formidável qualidade de seus melodramas.

Lágrima - É das fraturas sociais que nascem os sofrimentos amorosos nos filmes de Emilio Fernández. "Pueblerina", de 1948, mostra dois párias. Um ex-presidiário volta a sua aldeia, tenta refazer a vida e esposar a mulher que ama. Mas ela fora estuprada por um poderoso, teve um filho, vive retirada e quase enlouquecida numa cabana fora da cidade.

"Maria Candelaria", de 1943, com os super-astros Dolores del Rio e Pedro Armendáriz, faz com que a heroína, cujo estigma é ser filha de uma prostituta, termine apedrejada, vítima dos preconceitos de uma pequena aldeia. O mesmo casal estrela "Bugambilia" ("Coração Torturado", 1944), conto de amor entre o capataz e a filha do patrão. Em "Enamorada", Maria Félix, a protagonista, abandona riqueza e casamento bom para seguir um líder zapatista, num final que retoma a conclusão de "Marrocos" (1930), de Sternberg, onde Marlene Dietrich acompanhava, a pé, as tropas de seu legionário Gary Cooper.

As paixões individuais inserem-se no tecido social e histórico como parte deles, não como enxertos mais ou menos bem-sucedidos. Melhor do que compreender aquilo que está ocorrendo, o espectador vive as ramificações contraditórias dos embates, das injustiças, das frustrações e dos desfechos tremendos.

Mármore - Um outro desses diretores mexicanos, Roberto Gavaldón, também foi representado no ciclo mexicano do festival carioca. "La Diosa Arrodillada" ("A Deusa Ajoelhada", 1947), cujo título só se compara ao de "A Condessa Descalça" (1954), filme americano de Mankiewicz, mostra que os homens são frágeis, patéticos, e as mulheres, magníficas como estátuas. Ao lado de Arturo de Córdoba, Maria Félix nunca esteve tão resplandecente. Ela é o modelo para uma escultura, em que Vênus, nua, se põe de joelhos, tornando-se o centro de obsessões trágicas. Diverso de Fernández, Gavaldón situa tudo numa sociedade luxuosa e elegante.

Pepitas - Nenhum desses filmes mexicanos demonstra feitura artesanal ou acabamento desleixado. As técnicas de filmagem, de montagem, a fotografia e o som eram o que de melhor se podia fazer na época. Isso, mais o gênio dos diretores e o magnetismo dos intérpretes a serviço de situações emotivas, explica o sucesso fabuloso que esses filmes tiveram em toda a América Latina. Tomara que o ciclo proposto pelo Festival do Rio BR 2002 seja retomado em outras cidades. Tomara também que cópias restauradas dessas obras surjam em DVD. São filmes que deveriam encontrar, dentro da história do cinema internacional, o lugar elevado que merecem.

Jorge Coli é historiador da arte.

Estes comentários granjearam um e-mail de agradecimento da embaixatriz do México no Brasil. Perdi o e-mail, esqueci o nome da embaixatriz, mas ele me deixou muito contente. Esperei que os filmes fossem mais divulgados, mas não foram. Agora, alguns podem ser encontrados na internet, em cópias de qualidade. É importante que seja assim, com imagens nítidas: a beleza da fotografia deve ser apreciada de modo pleno.

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