Famílias! eu vos odeio!

Quantas vezes se ouve, nas séries americanas, a exclamação: "We are family!", "Nós somos uma família" (ponho o indefinido uma, porque "Nós somos família" parece-me mais ambíguo, podendo ser interpretado no sentido "de família", ou seja, temos moral).
A expressão soa, para mim, como desagradavelmente obscena. É um apelo: haja o que houver, os membros da mesma família dão apoio uns aos outros, por cima de qualquer coisa: ética, leis, o diabo. Os laços do sangue unem o clã, contra tudo, contra todos, e mesmo contra si próprios.

Jean-Baptiste Greuze - A maldição paterna - 1778

Há algo de doentio nessa obrigatoriedade dos laços sanguíneos. O sentimento de culpa se inocula em cada membro: é a culpa o grande cimento da união. 
Mesmo afastando os crimes e as perversões que podem ocorrer em meio familiar, esse próprio meio pode criar um caldo tóxico do qual é muito difícil se livrar.

Ford Madox Brown - `Take your Son, Sir' - "Pegue o seu filho, Senhor" - 1851 

Freud inventou o "romance familiar" em 1908, ficções pelas quais, cada um, ao crescer, modifica sua relação com os pais, com a família, que permite distanciamento, eliminação da culpa em desejos incestuosos, neutralizando a figura paterna. 

Família Freud. Sigmund é o primeiro, de pé, a partir da direita.


Ah, o pai! o ogro!  Ele é, com frequência, o instrumento de terror em meio familiar. Quem quer que esteja um pouco familiarizado com as óperas de Verdi sabe o que sejam pais monstruosos. 

Jean-Baptiste Greuze - O retorno do bêbado - 1780 circa

"Famílias! eu vos odeio!" é uma célebre exclamação extraída do romance Os frutos da terra (Les norritures terrestres, 1897), de André Gide: "Famílias! eu vos odeio ! lares vedados; portas encerradas; possessões ciumentas de felicidade." ("Familles ! je vous hais ! foyers clos ; portes refermées ; possessions jalouses du bonheur.").

Em 2010, certo Lucien A, de Estrasburgo, na França, 95 anos, professor de alemão aposentando, mandou gravar no túmulo de sua esposa, Ginette, a frase de Gide. Primeiro, ele pediu autorização à administração dos cemitérios para fazer isso. Recusa. Ele recorre então ao prefeito, que autoriza, desde que a citação venha acompanhada de suas referências: o título do romance e o nome do autor.


A família não foi informada. Descobre só quando ocorre o enterro de uma das netas de Lucien, que se suicidara depois de ter dado à luz! Os filhos levam um choque moral. Haviam rompido com o pai, desde a morte da mãe, acusando-o de violências contra a mãe, contra eles próprios, os filhos, contra seus alunos, seus vizinhos... Um tirano. 

A família recorre ao tribunal administrativo, solicitando a remoção do estranho epitáfio. Mas os prazos haviam se esgotado. A lápide deverá manter a inscrição.

Por solicitação da prefeitura, os jornais não publicaram o nome do cemitério, para evitar que o túmulo se transformasse em atração turística.

Revolta do pai contra o romance familiar, revolta dos filhos contra o pai opressor. Uma das etimologias cogitadas para a palavra família, é a derivação de famulus, fâmulo, o servidor do mestre.


Francisco de Goya y Lucientes - Saturno devorando um filho - 1819 - 1823


Uma das vantagens trazidas pelo artigo de Freud é a dissolução do pai no meio familiar. Ou melhor, sua destituição do poder.

Há um romance de Jean Cocteau intitulado Les enfants terribles (As crianças terríveis - 1929) , em que o pai é inexistente, a mãe, doente, desaparece da cena: seria a vitória da ficção freudiana. Apenas, entregues a eles próprios, os jovens vivem mergulhados numa sopa tóxica, na qual sobressai a irmã, substituta do papel materno, numa fratria real ou de adoção. 

Desenho da capa de Jean Cocteau

O livro se transformou em filme em 1950, dirigido por Melville, talvez o gênio maior da Nouvelle Vague. Ele havia dirigido apenas Le silence de la mer (O silêncio do mar, 1947), uma obra que está entre as fundadoras desse movimento.





Foi estrelado por Édouard Dermit, a última grande paixão de Cocteau, que terminou por adotá-lo como filho. Mais que Jean Marais, ele cuidou do legado que o poeta deixou à sua morte, em 1963. Foi também pintor.

Retrato de Jean Cocteau, por Édouard Dermit. 1958

Tinha a beleza grega, como Jean Marais, muito mais luminosa, e nada presumida, como era a de Marais.





O filme foi criticado por seu artificialismo: os personagens não correspondem às idades, mais jovens, que devem representar; Jean Cocteau intervém como narrador. 



A teatralidade doentia que domina o ambiente do filme permite jogos que são antes simbólicos: a atriz Renée Cosima deve, no início, encarnar o belo e fatídico Dargelos, sobre o qual o romance escreve: "Os privilégios da beleza são imensos. Ela age mesmo sobre aqueles que não a constatam. Os mestres amavam Dargelos".

 

Depois, ela deve surgir como Agathe, que possui semelhança alucinante com Dargelos. No entanto, sua beleza não parece tão extraordinária, e o lugar dela vai para Dermit, que encarna Paul, a vítima.

Paira sobre os romances de Cocteau, e sobre As crianças terríveis em particular, a sombra de Pélleas et Mélisande, de Maeterlinck: um processo poético que transforma elementos metafóricos em sugestões quase simbólicas. Isso está também presente no assim chamado "realismo poético", corrente do cinema francês que floresceu dos anos de 1930 até a segunda guerra mundial.

Por exemplo:

No início, alunos de um colégio travam uma batalha de bolas de neve. Paul ama Dargelos: " Ele buscava Dargelos. Ele o amava. Esse amor o devastava ainda mais porque ele precedia o conhecimento do amor. Era um mal vago, intenso, contra o qual não existe remédio algum, um desejo casto, sem sexo e sem objetivo".

Mas Dargelos esconde uma pedra em sua bola de neve e a atira em Paul, atingindo-o no coração.



Paul, a partir desse momento, ficará inválido. Só voltará a amar quando Dargelos ressurge na imagem feminina de Agathe.



São evidentes figuras de substituição. 

Substituição também - já foi evocado - a neve pela cocaína, a bola de veneno oriental pelo ópio. As drogas perseguiram Cocteau.

Com a figura paterna, elabora-se o ódio. Sem ela, dissolve-se no caos.



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"Ela era filha de cocainômanos que a brutalizavam e que se suicidaram com o gaz."

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"A morte súbita da mãe deles suspendeu as tempestades. Eles a amavam, e se eram bruscos para com ela, é que a supunham imortal."

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"Elizabeth e Paulo, feitos para a infância, continuavam a viver como se eles tivessem ocupado dois berços gêmeos."

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"A riqueza é uma aptidão, a pobreza também. Um pobre que se torna rico exibirá uma pobreza luxuosa. Eles eram tão ricos que nenhuma riqueza iria mudar suas vidas. A fortuna poderia chegar durante o sono, ao acordar eles não perceberiam nada"

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"Descer em si pede uma disciplina da qual eles eram incapazes. Dentro, eles só encontravam trevas, fantasmas de sentimentos."



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