A moça e o mar

Vamos esquecer as Venus que brotam das ondas, em pé, surfando numa concha. Nos anos de 1860 houve uma febre de mulheres alongadas diante do mar. A - relativa - novidade é o paralelismo entre as ondulações femininas e o ondeamento das águas.




A primeira obra de impacto foi A pérola e a vaga, de Paul Baudry (1862, Museu do Prado). É um soberbo quadro: sutileza da linha, nuanças de colorido, modelado sólido e suave ao mesmo tempo,  delicadeza da epiderme. Os críticos de vanguarda detestaram. Castagnary, amigo de Courbet, comentou que ela parecia "uma modista parisiense, deitada para esperar algum milionário que se perdesse nesses ermos". Era uma crítica à falta de nobreza do personagem. É verdade que Baudry deu a ela um corpo moderno, nada clássico, inserindo detalhes realistas, como o calcanhar, os artelhos escuros e a maravilhosa dobra do ombro.
A moça está entre a terra e a água, num lugar implausível, desconfortável e pouco convidativo, com algas, conchas e arestas. Mas suas formas se ligam à ondulação do mar.


No ano seguinte, 1863, Cabanel expôs O nascimento de Vênus (Museu d'Orsay) . O corpo é  irreal e contrasta com os volumes palpáveis e o pé sujo da Pérola de Baudry. Rosenblum escreveu a seu respeito: "Sua Vênus flutua em algum lugar entre uma deidade antiga e um sonho moderno". Rosenblum lembra também os olhos entreabertos, num falso sono que é um verdadeiro convite erótico. O quadro é divulgado hoje nos manuais em contraposição à Olímpia de Manet, exposta em 1865, como o exemplo perfeito de pintura "acadêmica". O Imperador Napoleão III comprou a tela por um preço enorme. Zola, amigo dos impressionistas, foi impiedoso: "A deusa, afogada num rio de leite, tem o ar de uma deliciosa cortesã, não de carne e osso - o que seria indecente - mas feita com uma espécie de pasta de amêndoas branca e cor-de-rosa."




Em 1865, o grande Corot também sacrificou ao gênero, com uma Bacante (Metropolitan Museum, NY): o contorno é depurado, a grande anca curvilínia evoca a Moema, de Victor Meirelles, que está por vir. Ela é identificada como bacante por causa da pele sobre a qual está deitada - os leopardos eram os animais de Baco. O grande arco do corpo contrasta com a linha do horizonte, mas tudo se integra numa atmosfera sutilíssima, que permite, sem pôr em evidência, que o sexo da moça seja escurecido.



O erotismo das ondulações femininas, dos longos cabelos, esse vínculo entre a mulher e o mar que é fonte de vida - Afrodite foi engendrada por suas espumas - ganha um tom necrofílico com a Moema, de Victor Meirelles (1866, MASP).






A índia, afogada, foi atirada à praia. Meirelles faz eco entre suas perfeitas formas curvas, que se elevam à dignidade da abstração, e o desenho da praia. A horizontalidade do corpo é retomada por um recife que aflora. Os cabelos negros e úmidos se abrem como um cocar.

É René Magritte quem radicaliza o erotismo com uma inquietação. O sonho da moça no mar se transfigura em atração e repulsa.


René Magritte - Invenção coletiva - 1934 - Museu de Dusseldorf

Para concluir, duas imagens muito antigas, precursoras do abandono feminino junto ao mar. Duas Vênus.

A primeira é um afresco que orna a parede do jardim naa Villa Venus Marina, em Pompéia (séc. 1 a. C.). A deusa se alonga numa concha, que avança sobre as águas, empurrada pelo vento e por dois amores. Ela expõe sua delicada beleza, ornada apenas por um colar de pérolas. 



A segunda está no Museu Britânico, e data do início do século 14. Ilustra o Breviari d'amor, de Matfre Ermengau, de Béziers, na França. Está escrito em ocitano, e explica de que maneira o mundo é uma emanação do amor.



Maravilhosa iluminura: o corpo de Vênus, esquemático, traçado pelo contorno, mistura-se com as águas, figuradas com o mesmo tipo de grafismo. A deusa e o mar têm a mesma substância. O mar é sexualizado por essa divina mulher, que está de pernas abertas, revelando seu sexo firmemente traçado. Ela tem nas mãos um círculo onde está escrito "Vênus". As descrições referem-se a ele como um espelho. Eu prefiro pensar que se trata da estrela vespertina, o planeta Vênus, que se levanta do mar. Com seu gesto, a Vênus da iluminura une seu lugar no firmamento e nas águas.

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