Marionetes do destino



SATONY ZAZAS LIFTOACH PANDEMONIUM! 

Para os precipitados, deixo claro: este texto contém spoilers. Caso não tenha assistido ao filme, corra para a sala de cinema mais próxima e leia apenas depois.

Hereditary me pegou de coração desprevenido. Independente do número de artigos e críticas lidas antes de assistir ao filme, nada entregava as diversas sinuosidades da trama. Nem mesmo os trailers. Trata-se de um horror psicológico de 2018, escrito e dirigido pelo brilhante Ari Aster. O filme foi produzido pela A24, que rendeu nos últimos anos outras grandes obras, The Witch (Robert Eggers, 2015) e It Comes at Night (Trey Edward Shults, 2017).

A trama se desenvolve em torno da família Graham e a recente perda da avó materna, Ellen Leigh, bem como os acontecimentos macabros que se instauram no entorno da família após seu falecimento.
Leigh era uma senhora reservada. Como diz a filha Annie (Toni Collette) em seu funeral: “Minha mãe era uma mulher privada e intensamente segredista. Ela tinha rituais privados, amigos privados, ansiedades privadas”. 
 

 Leigh era uma adepta dos mais secretos rituais de espiritualismo e antes de tudo uma mulher que passou por inúmeras perdas. Portadora de transtorno de personalidade e demência: “Não que ela fosse mesmo minha mãe no final. E jamais que sentira culpa. Por nada”, Annie salienta. Em vida, presenciou a morte do marido, acometido por depressão psicótica, que faleceu de inanição após o nascimento de Annie. E posteriormente do filho mais velho, esquizofrênico, que se suicidou aos 16 anos por acreditar que a mãe “colocava pessoas em seu corpo”. 

Os trailers e imagens promocionais nos levam a crer que Charlie, a filha caçula da família (interpretada pela expressiva e enigmática Milly Shapiro) será a protagonista do filme, nada mais que um novo longametragem de satanismo, cuja teia de encadeamentos macabros tem origem na figura da criança. Doce engano, ou nem tão doce assim.


 Charlie é importante para a história, mas ela morre logo no primeiro terço da trama. Um fim cruel para a jovem de apenas treze anos, decapitada em um acidente automobilístico no meio de uma estrada deserta. E pior, o motorista, seu irmão Peter (Alex Wolff). Mas a morte de Charlie não impede sua participação no restante do filme. Sua presença invisível invade a tela. Seu tique característico, o estalar da língua, é uma manifestação reiterada a cada cena, assombrando seus familiares e espectadores. 

Em meio às caixas com os pertences de sua mãe, Annie encontra um livro sobre espiritualismo e uma nota, que avisa: “Perdoe-me por tudo aquilo que não pude te contar. Por favor não me odeie e tente não se desesperar diante das perdas. Você verá que no final elas valerão a pena”.

O filme, no entanto, de maneira muito inteligente e perspicaz, nos alimenta, desde o início, com pistas, mensagens e indícios de que o verdadeiro protagonista, ou aquele cuja atenção nos é sempre furtada, é na realidade Peter, o filho mais velho da família. Aquele que Annie, no auge de um pesadelo, revela não ter sido desejado, que tentara de inúmeras formas abortar, que quase assassinou num episódio de sonambulismo: “Estava tentando te salvar”.

Peter parece não se encaixar naquele meio. No dia a dia com a família, pouco interage com o pai. Nutre na mãe uma aparente desconfiança, nascida de um evento traumático na infância. Encontrando conforto apenas nos amigos da escola e no constante consumo de cannabis, para aliviar a alma, claro.

Annie é uma artista. Uma miniaturista que retrata o seu cotidiano em maquetes realistas, minuciosamente elaboradas. O ambiente escolar, a internação da mãe no hospital, os eventos passados, a residência da família, até mesmo o acidente da filha, tudo compõe o imaginário artístico – ou seria melhor dizer, a realidade de sua œuvre: “YOUR LIFE IN MINIATURE”, tal qual o título de sua mais recente exposição na Galeria Asher de Nova York.

 
Na sequência inicial nos é revelada, do interior do ateliê, uma vista para a parte externa da propriedade, de onde vemos a emblemática casa da árvore. Local em que Charlie, apesar do frio, gosta de passar as noites. A câmera atravessa o cômodo, nos levando em direção a uma das obras de Annie, o diorama da residência. Ali Peter dorme.

Parece bobo e até singelo, mas o quarto de Peter é o único cômodo da casa, cujas estruturas se fazem evidentes. Franco, aberto, mal encaixado, despido, assim como ele. Um pouco como se não estivesse terminado, tal qual o ritual tripartido que culmina no ápice do horror familiar. A casa na árvore – epicentro dos rituais de glorificação de Paimon, um dos sete senhores do Inferno –  igualmente se estrutura por colunas, no caso, os troncos decepados das árvores. Quase um espelho do outro, o lugar macabro, sempre visível com sua iluminação escarlate refletida dos olhos do fragilizado Peter.
 

 
Na sala de aula, ele aprende sobre Sófocles e a tragédia grega, mas parece mais atento na peculiar traseira da colega da frente, Bridget, por quem tem uma leve “queda”. Eis a chave do mistério: seu professor questiona os alunos acerca d’As Traquínias: “qual foi o erro de Héracles?”
“Arrogância”, responde a aluna. “Porque ele literalmente se recusa a ver todos os sinais que lhe são entregues ao longo da peça”

Peter igualmente recusa-se a ver os sinais. E como nós, deixa passar as pistas, confunde-se na visão adolescente, embriagada pelo sexo, tal qual os espectadores se deixam inebriar pelo constante sentimento de ansiedade que o filme proporciona. É ele o responsável pela trágica morte da irmã. É dele o ponto de vista quando adentramos o funeral de Charlie, sua visão embaçada, encapuçada pelo vitral amarelado da sala de jantar. 

O filme trabalha com um círculo limitado de personagens, ambientes fechados e uma atmosfera inquietantemente cálida. Apesar das constantes alusões ao frio, os aquecedores de um vermelho demoníaco brilhando por entre as janelas da casa da árvore; a referência ao fogo, nas velas, na lareira, nos corpos flamejantes; as mantas de patchwork que ocupam os quartos da residência, tudo causa a sensação de um ambiente confortável, embora incômodo. Talvez seja obra da direção de fotografia, assinada por Pawel Pogorzelski. No roteiro, o horror parece se instaurar no frio grisalho. O inverno é mais rigoroso. Charlie deixa suas pegadas na imensa branquidão que habita a floresta da propriedade, a natureza parece congelada. Fria, sinistra, inabitável. Os flocos de neve, decaem ao redor da igreja satânica, vista ao final como também um de seus dioramas. Até a coroa do Rei Paimon é aqui prateada. Enquanto no filme, o ídolo que porta a cabeça degolada de Charlie exibe um grande ornamento dourado sobre o crânio decomposto.


Hereditary toca em pontos inquietantes. Insere elementos de um horror visceral num thriller psicológico que lida com o luto, a perda e uma cortina de eventos trágicos, ambientado majoritariamente no interior de uma residência de núcleo abalado.

Como as obras de Annie, com seus detalhes que despertam o olhar dos curiosos, nos surpreendemos com o desvelar de fragmentos escondidos, palavras satânicas gravadas sobre o papel de parede dos quartos, estilhaços diminutos que compõem uma assombrosa arquitetura de terror. Segredos e mais segredos empilhados. Uma vida encoberta por traumas, soterrados nas profundezas do solo, com suas estruturas familiares violadas, tal qual uma das miniaturas que decora a escadaria da sala. Trata-se de um ciclo vicioso de manipulador e manipulado, do qual não se pode escapar. Afinal de contas, o mal permeia a vida, ele é hereditário.
 


Comentários

  1. Acabei de sair do cinema. O filme é de tirar o fôlego e este texto acompanha maravilhosamente as nuances da obra. Obrigada Letícia!

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