David Lynch é um cineasta?

Foi uma surpresa forte, pelo menos para mim


Acabo de ver, Centro Internacional de Artes Gráficas, que fica em Liubliana (Eslovênia), uma exposição intitulada Fire on stage.


É consagrada às gravuras, ou melhor, às litogravuras de David Lynch.
Qualquer biografia breve desse cineasta não deixa de mencionar sua vocação precoce para as artes plásticas, seu contato com o pintor Bushnell Keeler, sua passagem pela School of the Museum of Fine Arts in Boston, sua ida para Salzburgo em busca de Kokoschka, que não encontrou, seu retorno aos Estados Unidos, seu período passado a estudar na Pennsylvania Academy of the Fine Arts, sua descoberta de Francis Bacon e sua conversão ao cinema, depois de alguns curta metragens.

Que ele continuasse pintando quando se tornava um dos criadores mais originais no universo do cinema, está certo. Como um hobby, talvez, um violon d'Ingres significante mais para a curiosidade do que para outra coisa. 

No entanto, suas litos, em tamanho pequeno, médio, e muito grande, demonstram não só o mais alto grau de profissionalismo. Elas causam um choque: o de descobrir obras feitas por um grande, um excepcional gravurista.



Fire on stage deu o nome à mostra. Ela data de 2008. Foi recente a descoberta da litogravura por Lynch, em 2007. De lá para cá, fez mais de duzentas. 
A gravura, e mesmo a lito, com sua ductibilidade pictural, são muito exigentes. A técnica específica denuncia logo o amadorismo. Lynch, ao contrário disso, mostra um domínio completo. Seus negrores untuosos, de piche, e a beleza da luz, que as reproduções não rendem plenamente, suas passagens de tons, o caráter decisivo do gesto, são os de um mestre.



Lynch insere palavras nessas obras. Ele diz, a respeito: "As palavras nas pinturas às vezes são importantes para você começar a pensar sobre o que mais está acontecendo ali. E muitas vezes, as palavras me excitam como formas, e algo brota disso. Eu costumava cortar essas letras e colá-las. Elas parecem tão bem, todas alinhadinhas como dentes ... às vezes tornam- se  o título da pintura." Isso é verdadeiro também para as litos. As palavras aparecem ali, embora não coladas. A gravura acima toma o título de sua inscrição, e data de 2010.

Lynch é um poderoso, um estupendo narrador. Porém, na maioria de seus filmes, e na série Twin Peaks, a narração não se encadeia numa qualquer lógica. O assassinato de Laura Palmer é um MacGuffin, um gimmick. Ok, o assassino foi revelado, mas ele não importa para a trama, embora seja essencial como pecado original que enfim se manifesta. Nisso, Lynch radicaliza a tradição do film noir: quem pode dizer, de fato, o encadeamento de razões em filmes como A beira do abismo, de Hawks, ou de A dama de Shangai, de Orson Welles? Em Lynch, tornou isso uma estratégia... narrativa. Nele, o que nos fascina são os fragmentos narrados, em suas unidades, e o modo como se sucedem exige do espectador uma contínua indagação sobre o sentido, ou antes, de como o novo fragmento inesperado fará sentido. Na medida em que assistimos, nossa racionalidade vai ficando cada vez mais órfã. Muitos não aguentam, e armam esquemas explicativos arbitrários, que nunca se sustentam.


Não é muito diferente a relação que imagens e texto mantém entre si, nas litos de Lynch. Sugerem, parecem oferecer um caminho para chegar ao sentido, mas são antes o componente de um enigma. A pergunta "Quem puxa os cordões?" na gravura acima, pode ter ressonâncias metafísicas. Mas ai de quem tentar oferecer alguma resposta.


Lynch diz que sua pintura é "orgânica, primitiva e áspera". É verdadeiro também para as gravuras. Ásperas, sem dúvida, porque nelas nunca está incluído um elemento de suavidade. Primitivas, no sentido de primordiais. E orgânicas porque tudo flui de modo vital.

Uma delas traz a lembrança de sua passagem pela Pennsylvania. Lynch retoma uma obra de Duchamp conservada no museu da Filadélfia, Considerando: 1. A cascata, 2. Iluminação a gás. Surge, invertida, na gravura intitulada E. D. (2012). D., para Duchamp, ok. Mas E.? Vá saber. Em todo caso, a grama que avança sobre o corpo feito de pura luz mostra uma fenomenal materialidade.

Conta-se que Lynch, no início de sua carreira, pensou em usar um pseudônimo para distinguir o artista plástico do cineasta. Seria inútil: o universo de ambos é o mesmo.


Um mundo verdadeiramente orgânico. Na exposição de Liubliana, há duas telas a óleo, com suntuosas densidades do negro.



A de cima, intitula-se Ela chorava bem do lado de fora da casa. (1990). A de baixo (1992), Um inseto sonha com o céu. Haveria o que dizer sobre o humor que embebe os sentimentos mais terríveis, mais angustiantes, nas criações de Lynch. Mas é melhor pingar o ponto final, porque este post já está longo demais.

 


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