A purificação pelo fogo – ou três ou quatro coisas sobre Fahrenheit 451


Sóis e queima de livros. Imagem de Hartmann Schedel, "Nuremberg Chronicle" (1493)


Um dos primeiros casos relatados de queima de livros ocorreu na China antiga, ente os anos 213 a.C. a 206 a.C. De acordo com o historiador da corte chinesa Sima Qian (145 a.C. a 86 a.C.) o evento chamado queima de livros e sepultamento de intelectuais foi uma política implantada durante a dinastia Qin, onde as chamadas cem escolas de pensamento foram perseguidas, enquanto o legalismo foi preservado. O primeiro imperador da China unificada, Qin Shi Huang, ordenou que a maioria dos livros anteriormente existentes fossem queimados, a fim de evitar comparações de reinos passados com o seu.


Nesta pintura do século XVIII, de autoria desconhecida, vemos um palácio com o imperador confortavelmente sentado em seu trono, escoltado por soldados. Ao pé das escadas, um súdito ajoelhado lhe oferece um livro, provavelmente de conteúdo legalista. Enquanto isso, para fora dos muros do palácio, soldados atiram estudiosos num buraco (após ser enganado por dois alquimistas que lhes prometeu vida prolongada, o imperador ordenou que mais de 460 acadêmicos da capital fossem enterrados vivos), enquanto alguns livros são incendiados ao lado.


Neste desenho, temos uma versão menos dramática do caso, onde o sábio imperador, sereno porém firme com seu braço estendido, recebe os livros banidos dos estudiosos, que alimentam a fogueira.

Outro caso ocorreu no início da era cristã e envolveu o apóstolo Paulo em Éfeso. Conforme descrito em Atos 19: 18-19, após uma onda de conversões no local "Muitos dos que creram, assim que chegavam, começavam a confessar e a declarar em público suas más obras praticadas. Da mesma forma, muitos dos que haviam se dedicado ao ocultismo, reunindo seus livros de magia, os queimaram diante de toda a comunidade reunida. Calculados os seus preços, chegou-se à estimativa de que o valor total equivalia a cinquenta mil moedas de prata."

O parisiense Eustache Le Sueur pintou a cena, numa versão preliminar de 100.8 x 84.8 cm


Para então realizar a versão definitiva em tamanho maior, 394 x 329 cm.

A pregação de São Paulo em Éfeso, de Eustache Le Sueur, 1649.



Na primeira versão temos o apóstolo Paulo ao centro, parecendo surpreso com a comoção dos novos fiéis, enquanto os outros discípulos na plataforma dão graças, dispensam esmolas, ouvem a confissão e abençoam os convertidos, emoldurados por um céu azul entre os prédios. Na parte inferior, dois homens carregam pesados livros, montando uma pilha onde um rapaz se esforça em acender a chama. Já na segunda, Paulo levanta o indicador a um severo e ameaçador céu, enquanto segura as Escrituras com a outra mão. A multidão recém-convertida está toda empenhada em levar seus livros de magia para a fogueira, já acesa, para queimá-los publicamente. Caso contrário, o castigo parece iminente.

Algumas décadas antes, o artista holandês Maerten de Vos também pintou a cena. Nela, nada de serenidade. Ao contrário, temos uma multidão à esquerda que corre em direção à fogueira de livros, ao fundo, apontada pelo personagem central. À direita um sujeito segura um outro, talvez um dos proprietários dos livros em chamas? É possível identificar ao fundo uma multidão jubilante pela fumaça herética que sobe aos céus.

São Paulo em Éfeso, de Maerten de Vos, 1568. 



Até Gustave Doré representou a cena, quando criou a série de 241 gravuras para ilustrar uma edição de luxo da Bíblia, lançada em 1866. Paulo, inabalável como uma estátua clássica, no centro do quadro, olha a fila de novos cristãos ansiosos em queimar seus textos místicos. Há um fortíssimo tom épico aqui.

São Paulo em Éfeso, de Gustave Doré, 1866.




E só pra finalizar essa parte, segue uma xilogravura feita para o Index librorum prohibitorum, de 1758, de Tommaso Agostino Ricchini, que cita o versículo do livro dos Atos.


Séculos depois, longe dali, após o Primeiro Concílio de Niceia (325), o imperador romano Constantino publicou um édito contra o arianismo que incluía a queima sistemática de livrosː

“Adicionalmente, se qualquer escrito redigido por Ário for encontrado, deve ser lançado ao fogo, de modo que a maldade de seus ensinamentos seja esquecida e que nada seja preservado dele. E anuncio, aqui, que, se qualquer pessoa possuir um escrito de Ário e não o lançar imediatamente ao fogo, será condenado à morte. Assim que ele for descoberto com a prova de seu crime, será submetido à pena capital”

Constantino I e a queima dos livros arianos, ilustração de um compêndio do norte da Itália sobre o direito canônico.


Na Idade Média, o “julgamento pelo fogo” foi usado como meio de estabelecer a verdade; os milagres prevaleceram sobre os argumentos racionais. Essa pintura aí de baixo, de Pedro Berruguete, mostra a lenda de São Domingos de Gusmão e seu opositor, um médico albigense, jogando seus livro no fogo, cada um a fim de demonstrar os erros da doutrina do outro. O de são Domingos teria, miraculosamente pulado do fogo.

São Domingos de Guzmán e os albigenses, de Pedro Berruguete, 1493-1499.

Avançando para o século XIX, temos essa curiosa insígnia da Sociedade de Nova York para a Supressão do Vício, fundada por Anthony Comstock em 1873 e só dissolvida em 1950. O grupo defendeu a proibição e a queima de obras literárias por motivos morais. Estima-se que a organização tenha destruído 15 toneladas de livros, além de 130 mil kilos de chapas para imprimir os livros censuráveis e 4 milhões de fotos.


Anos depois, em 1948, após a publicação nos EUA do artigo “Horror in the Nursery”, onde o dr. Fredric Wertham, um médico nascido na Alemanha, culpava os quadrinhos pelo novo comportamento perturbador dos jovens, houve uma onda voluntária de queima de gibis. Milhares de crianças e jovens pelos Estados Unidos, liderados por escoteiros, grupos religiosos e pais tacaram fogo em suas coleções de quadrinhos.




E é claro, nos anos de 1930, na Alemanha, houve a queima nazista de livros. Foi uma campanha conduzida pela União dos Estudantes Alemães para cerimonialmente queimar livros na Alemanha nazista e na Áustria. Os livros destinados à queima eram aqueles considerados subversivos ou representando ideologias opostas ao nazismo. Estes incluíam livros escritos por autores judeus, pacifistas, religiosos, liberais clássicos, anarquistas, socialistas e comunistas, entre outros. Os primeiros livros queimados foram os de Karl Marx e Karl Kautsky.

O ápice disso que os alemães chamam de Bücherverbrennung (é incrível como eles tem palavras pra tudo, né) se deu em 10 de maio de 1933, onde os estudantes queimaram mais de 25 mil volumes de livros "não-alemães" na praça da Ópera Estatal de Berlim. Em muitas outras cidades universitárias, os estudantes nacionalistas marcharam em desfiles iluminados pela tocha contra o espírito "não-alemão". Nos locais de reunião, os alunos jogavam os livros banidos e saqueados nas fogueiras com uma grande cerimônia alegre que incluía música ao vivo, cantos e "juramentos de fogo".




Nessa época, Freud teria dito a seu amigo Ernest Jones: "Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média teriam queimado a mim; hoje em dia eles se contentam em queimar meus livros". Claro que, pouco tempo depois, com os crematórios dos campos de concentração, esse comentário se mostrou morbidamente ingênuo.

Durante a Revolução Cultural Chinesa, que foi de 1966 a 1976, houve uma imensa operação política de purificação, onde toda a cultura proveniente de antes da Revolução Comunista liderada por Mao Tsé Tung deveria ser destruída. Estátuas, pinturas, textos, tudo o que pudesse ser ligado ao passado ou ao capitalismo decadente deveria ser queimado.


Não podemos esquecer da Revolução Húngara de 1956.


E pra finalizar essa primeira parte, os milicos chilenos queimando literatura marxista em 1973, sob ordens do infame Pinochet.


Gostaria de falar agora sobre o livro de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, publicado em 1953.

No futuro distópico descrito no livro, numa metrópole não diferente das que temos hoje, Guy Montag é um orgulhoso bombeiro. As casas são à prova de fogo e os livros foram proscritos, inimigos da sociedade e dos cidadãos de bem. Cabe aos bombeiros, como agentes da higiene pública, queimar todos os livros para que as fantasias e insanidades contidas neles não perturbem o sono do cidadão honesto, que passa os dias mantendo um nível bovino de satisfação através de comprimidos narcotizantes e interagindo com onipresentes televisores.

Nesta sociedade policialesca, Montag começa a se questionar sobre o fascínio que estas páginas proibidas despertam nas pessoas, que arriscam suas vidas pelo prazer de ler. Seu encontro com uma senhora que se autoimola em sua biblioteca pessoal e com a jovem Clarice McClellan, que desperta nele o prazer das coisas simples, as indagações e o pensamento crítico, o levam a subverter todo seu modo de vida.

Em uma conversa entre Montag e o fascinante chefe dos bombeiros Beatty, temos uma das grandes sacadas do livro:

"Agora tomemos as minorias de nossa civilização, certo? Quanto maior a população, mais minorias. Não pise no pé dos amigos dos cães, dos amigos dos gatos, dos médicos, advogados, comerciantes, patrões, mórmons, batistas, unitaristas, chineses de segunda geração, suecos, italianos, alemães, texanos, gente do Brooklyn, irlandeses, imigrantes do Oregon ou do México. Os personagens desse livro, dessa peça, desse seriado de tevê não pretendem representar pintores, cartógrafos, engenheiros reais. Lembre-se, Montag, quanto maior seu mercado, menos você controla a controvérsia! Todas as menores das menores minorias querem ver seus próprios umbigos, bem limpos. Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever! Eles o fizeram. As revistas se tornaram uma mistura insossa. Os livros, assim diziam os malditos críticos esnobes, eram água de louça suja. Não admira que parassem de ser vendidos, disseram os críticos. Mas o público, sabendo o que queria, com a cabeça no ar, deixou que as histórias em quadrinhos sobrevivessem. E as revistas de sexo em 3-D, é claro. Aí está, Montag. A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus. Hoje, graças a elas, você pode ficar o tempo todo feliz, você pode ler os quadrinhos, as boas e velhas confissões ou os periódicos profissionais.
...
Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabana do pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro. Serenidade, Montag. Paz, Montag. Leve sua briga lá para fora. Melhor ainda, para o incinerador. Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os também. Cinco minutos depois que uma pessoa morreu, ela está a caminho do Grande Crematório, os incineradores atendidos por helicópteros em todo o país. Dez minutos depois da morte, um homem é um grão de poeira negra. Não vamos ficar arengando os in memoriam para os indivíduos. Esqueça-os. Queime tudo, queime tudo. O fogo é luminoso e o fogo é limpo."
(Fahrenheit 451, tradução de Cid Knipel, ed. Globo, pags. 51 e 52) 

Na histõria de Bradbury, o Estado pode ter facilitado a proibição dos livros, mas foi a população que decidiu parar de ler. É o nascimento de uma forma mais sutil de totalitarismo: a da sociedade de consumo e indústria do entretenimento, com sua moral e senso comum. 

Em 1966 o cineasta francês François Truffaut lançou sua adaptação do romance, com Oskar Werner e Julie Christie nos papéis principais. Foi aí que o livro ganhou mais notoriedade, já que se trata de um excepcional filme que fez sucesso com crítica e público. Até hoje se mantém como um filmaço.









E tem essa cena maravilhosa do confisco do livrinho do bebê:






E o revelador diálogo entre Montag e seu Capitão:












Bem, 1953 (quando lançado o livro) e 1966 (lançamento do filme) estão bem longe de 2018. O mundo mudou um pouco, e o futuro imaginado por Bradbury parece cada vez mais realidade e menos ficção. Falar em pensamento crítico hoje é quase piada, num mundo delirante e insano, fechado em si mesmo em pequenos núcleos de crenças intolerantes, potencializado pelas redes sociais. Um momento perfeito para uma nova adaptação de Fahrenheit. O diretor americano Ramin Bahrani se engajou no projeto, encarando de pronto a questão: as pessoas ainda se importam com livros físicos?:

"Pedi conselhos a um amigo de 82 anos. 'Vá em frente e queime livros,' disse ele. 'Eles não significam nada para mim. Posso ler o que quiser no meu tablet, do Gilgamesh a Jo Nesbo, e posso ler na cama, no avião ou à beira-mar, porque tudo está na nuvem, a salvo das tochas dos seus bombeiros.' Se ele pensava assim, imagine um adolescente."

Consciente da necessidade de adaptações em uma história escrita 65 anos atrás, Bahrani lançou sua versão este ano, bancado pela toda-poderosa HBO. Embora seja um filme excepcional, com Michael B. Jordan e Michael Shannon no elenco, o filme passou batido pelo público, tendo recebido críticas muito negativas, a maioria reclamando da falta de fidelidade ao romance. Pura burrice. Fidelidade é um negócio que só interessa a casais monogâmicos, e além disso o filme é muito respeitoso ao espírito de Bradbury. Muito.



Os bombeiros não podem se dar o luxo de queimar somente livros físicos

Já que os rebeldes disseminam livros online, upando obras completas na rede

É preciso destruir tudo.

As grandes telas não se encontram somente nas residências, mas imensos telões nos prédios exibem as ações dos bombeiros

Ao vivo e com participação popular, que acompanha as ações se manifestando através de emojis. Montag aqui é tipo um rockstar dos bombeiros, a população o ama.

E, claro, a cena da conversa entre Montag e o Capitão Beatty (que nas mãos de Shannon vira um personagem muito mais complexo e fascinante que no filme do Truffaut)
















Recomendo fortemente a leitura deste curto romance, assim como os dois filmes. Fazem com que pensemos em alguns aspectos recentes dos nossos movimentos identitários. É fácil queimar o Minha Luta, e talvez nos convençamos que Lolita ameace a integridade moral das crianças, portanto mereça o fogo. Assim como a pedofilia doente da Hilda Hilst em Lori Lambi. Então destruímos todas as cópias de O nascimento de uma nação, afinal é lixo racista. Bom cortar todas as menções à palavra "nigger" contida nos filmes, sobretudo os do Tarantino, aquele branco que se acha o maioral. Bukowski é um porco machista nojento e quem o lê boa pessoa não é, assim como Philip Roth, Reinaldo Moraes, Dalton Trevisan e todos esse homens brancos machistas e que deveriam mais é queimar todos. Rafinha Bastos e suas piadas devem ser varridas do planeta e ele encarcerado para todo o sempre amém. Assim como devem ser metralhados no paredão a quase totalidade do esgoto do stand-up brasileiro. E por que raios os filmes de Woody Allen e Roman Polanski continuam existindo, assim como esses seres abjetos? Morte a eles!

Queimar livros, fechar exposições, calar artistas.
Ah, eis nosso - mesmo que secreto - prazer!

Comentários