Quem pula abertura de série boa pessoa não é

Gostaria de sublinhar que os textos deste blog são de absoluta responsabilidade de seus autores.

Num local tão privilegiado como o Amável Leitor, onde transitam pessoas de valor humano e intelectual inquestionáveis, tomo a liberdade de criar esta postagem muito particular. Quero destilar meu ódio. Só isso.

Permitam-me.

Quem pula a abertura dos seriados não pode ser boa gente. Quem pula a abertura de qualquer série que seja é o tipo de pessoa que em caso de naufrágio vai correndo pegar um bote só pra ela. Que quando viaja de avião tira a meia e fica espalhando chulé fedorento. Quem faz isso não divide a latinha de breja com os parças, senta no lugar preferencial do busão e finge que está dormindo para não ceder o lugar pra grávida. Quem não vê as aberturas peida no elevador cheio e bota a culpa no próprio filho.

Tentarei me explicar.

Existem diferentes tipos de séries. As mais populares me parecem ser as de humor, como Simpsons ou Friends. Vamos relembrar a abertura pra primeira temporada dos Simpsons, em 1990:


Cada capítulo é uma história diferente, sobre a vida dessa família tipicamente americana. A abertura nos mostra cada um dos membros da família em uma ação diferente, que reforça a personalidade e o papel de cada um no teatro familiar: o pai trabalhador, a mãe dona de casa, o filho rebelde, a filha estudiosa, etc. A grande sacada aqui é que ao final da abertura, a família sempre tem uma ação diferente ao sentar no sofá. Quem assistia toda a sequência era recompensado com uma brincadeira única e irrepetível.

Em 1994 a Warner lançava Friends, com uma abertura deliciosa: ao som de I´ll be there for you, dos The Rembrandts, temos o icônico sexteto dançando e brincando em frente a uma fonte de água, enquanto o nome de cada um dos atores é apresentado. Com o correr das temporadas, pequenas inserções das cenas mais cômicas apareciam, criando uma dinâmica e frescor que tinham tudo a ver com o programa. Eu mesmo sempre batia as cinco palminhas da abertura, era um ritual fundamental de ser ver Friends



Ficou claro, né? A abertura desses programas não só apresentavam os personagens (já que os fãs o reconheciam), mas serviam para criar vínculos muito profundos com os espectadores. Era um ritual antes do programa em si. É como a reza do pai nosso antes da missa.

Deixando o humor de lado um pouco e focando nessas séries dramáticas que são como romances divididos em capítulos, suas aberturas também nos dizem muito.

Vamos para 1990, quando David Lynch e Mark Frost lançaram Twin Peaks na televisão. O que é essa abertura? Um passarinho repousa num galho de pinheiro, bico altivo e olhar atento. A música de Angelo Badalamenti transborda do quadro, enquanto um cross dissolve vai fundindo o animal com a vista de uma fábrica, com suas cercas, barracões e chaminés, fumaça expelida lentamente num céu ferrugem, num entardecer de cobre e neve. Mesmo efeito de transição para uma esmerilhadeira automática, desbastando impessoal os dentes de uma serra, soltando caóticas e brilhantes faíscas. Outros ângulos da máquina, enquanto os créditos iniciais em verde e cinza começam, surgindo de forma pausada e monótona. Pinheiros, um gigantesco tronco de árvore, trilhos de trem e enfim uma pista com uma placa ao lado: "Welcome Twin Peaks. Population 51.201". Neste momento o espectador jaz mergulhado no abismo bucólico invernal desta pequena cidade, seu clima de fim de mundo e calma de alguma forma inquietante e perturbadora. As cenas seguintes, de uma cachoeira e de um rio seguindo indiferente seu curso só reforçam a o espírito do show.



Em 1997 a HBO - que se tornaria a Meca da tv de qualidade na primeira década do séc. XXI - lançava Oz, um programa sobre presidiários orquestrado por Tom Fontana. A abertura joga o espectador direto nos corredores sombrios e perigosos de uma prisão americana. Partindo de uma tatuagem sendo feita no braço de um detento, vemos os muçulmanos, os nazistas, lutas de boxe, estupros, nudez masculina constante, grades, cadeira elétrica, cães policiais, drogas e várias desgraças que prenunciam a desgraceira que é o programa.


Ainda na HBO, não é possível esquecer Tony Soprano ao som de Woke up this morning com seu charutão na boca, dirigindo de Manhattan para New Jersey, atravessando estradas e pedágios, percorrendo a dura e feia área industrial feita de fumaça, concreto e ferro, até chegar aos bairros tipicamente ítalo-americanos com seus comércios e enfim em sua casa no subúrbio.


Eu poderia passar o resto da tarde escrevendo sobre aberturas e postando seus respectivos vídeos. Mad Man, Dexter, American Horror Story, Game of Thrones e por aí vai. Mas vou parar os exemplos por aqui.

Vou focar no quanto me incomodava gente dizendo que acelerava o dvd na hora dos créditos porque queria assistir logo o programa, e não queria perder dois preciosos minutos da vida com algo que já havia visto. Sempre me pareceu coisa de quem não consegue apreciar os pequenos detalhes da vida, de quem não dá conta de comer entrada e já quer logo o pudim da sobremesa.

Com a chegada do Netflix, e seu infame recurso "PULAR ABERTURA", o prazer íntimo e lentamente construído através da repetição que é a entrada do seriado foi oficialmente sepultado.

Assisti The good place essa semana e com surpresa e tristeza notei a ausência de introdução. Nada. A coisa já nasceu com o botão de pular abertura em sua estrutura.

Ganha a impaciência, ganha a pressa.
Ganha a mediocridade utilitarista que não respeita a forma original da criação do artista.
Mas no fim perdem todos. Todos.



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