A velha mula

Em nossos dias, não há lá muitos gênios artísticos.  Clint Easwood é um desses poucos, e dos maiores, dos gigantes.

Um gênio puramente norte-americano, sem pretensões cultas, europeias. Um gênio que começou como limpador de piscina em Los Angeles (entre outros trabalhos de sobrevivência), para se tornar um mito como ator, e um imenso diretor.

Seu último filme, A mula, é fruto dessa genialidade que nada perdeu com a velhice de 88 anos.


É o filme mais anti-Trump que se possa desejar - e não importa que seu criador tenha feito campanha firme pelo presidente cor de laranja.

Em A mula, há um  retorno aos primeiros filmes que Eastwood dirigiu. Neles, sobressaía a concepção de que a ordem social, dominante, surge sempre embebida no mal. Um velho produtor de lírios, premiado, não consegue pagar a hipoteca e é posto na rua: que ataque ao mundo da meritocracia. A polícia é assustadora, quando não brutal e estúpida.

Ao contrário, os outsiders, as minorias oprimidas, reúnem as mais autênticas verdades humanas. Maravilhosa, em A mula, a rápida sequência das "Dykes on bikes" - das lésbicas motoqueiras. É reconfortante ver, no momento em que o presidente dos Estados Unidos quer construir esse muro infame na fronteira com o México, os latinos serem mostrados por Eastwood como humanidade  oprimida. Apenas a sequência em que um motorista latino, apavorado pelo controle policial, repete: “Statistically speaking, this is the most dangerous five minutes of my life” bastaria para fazer do filme um libelo contra a América branca e violenta.

Clint Eastwood mostrou-se, durante muito tempo, um herdeiro das utopias comunitárias que teciam esperanças nos anos de 1960. Desde o primeiro western que dirigiu, O Estranho sem Nome (1973), no qual o herói junta uma turma de outsiders - prostitutas, negros, anões, velhos e o que mais for - numa sociedade muito mais harmoniosa do que a oferecida pela ordem estabelecida. O herói solitário sabe agregar.


Clint Eastwood e Billy Curtis em O estranho sem nome (1973)

Na obra de Clint Eastwood, a crença num paraíso comunitário paralelo à sociedade dominadora quebra-se, no meu ver, quando ele dirige, em 2003,  Sobre Meninos e Lobos. Com esse filme, algo ocorre. Depois dele, o grupo paralelo deixou de tecer relações humanas harmoniosas. 




A partir daí, são os laços individuais que predominam e mesmo, por vezes, o surgimento de grupos perversos, manipulados pela história, como nos dois estupendos filmes de guerra, A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima (ambos de 2006).

Em A mula, há o retorno aos velhos valores. Ainda que o herói não se integre de fato a um grupo paralelo, insere-se nele com leveza e simpatia, mesmo em se tratando de traficantes: o mundo da droga tem, sem dúvida, uma violência inerente, mas não maior, e menos fria, do que a que rege a sociedade sob a lei. E o diretor mostra um grande prazer em humanizar os bons e os maus, de maneira a que essas duas categorias opostas terminem por deixar de existir.
Eastwood trata a droga com um amoralismo tranquilo, e seus trajetos (mais um de seus road movies em que o herói deve cumprir um dever), esplendidamente inseridos na paisagem, nunca trazem qualquer julgamento. O jogo de driblagem torna-se mais importante.

Há também a obsessão ética, que nunca o abandonou. Há o princípio de que a tecnologia jamais substituirá as qualidades humanas. Elas voltam aqui.


Mas chega por hoje.

Comentários


  1. Programei-me para ver o novo filme do Clint Eastwood na tarde de amanhã. Tudo o que ele tem produzido é muito acrescentador. Sua crítica tem aspectos diversos daqueles que tenho lido até aqui e hão de enriquecer o meu olhar.

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