A Academia, a Arte e um enigma

É Antonio Pinelli que observa, na apresentação italiana: "curioso paradoxo que vê um livro como Academies of Art, nascido sob a égide do Movimento moderno, terminar conhecendo seu maior momento de glória precisamente nos anos em que parece ser de rigor enterrar esse movimento e exaltar os ídolos que esses protagonistas quiseram destruir".


Autor: Marcelo Jorge  - Renascimento de Dionísio- 2017

Academias de arte, de Nikolaus Pevsner, publicado na Inglaterra em 1940, mas elaborado na Alemanha nos anos de 1930, conheceu edição brasileira apenas em 2005 (Companhia das Letras), pouco depois das edições francesa e italiana, que são de 1999. As datas falam por elas próprias.
Graças à monumental soma de informações que ele contém, foi, como escreveu Pinelli, "mais consultado do que lido".

Martin Ferdinand Quadal, Curso de desenho a partir do modelo vivo na academia de Viena, 1787.


O paradoxo se explica porque o assunto "academia" não interessava muito no momento do triunfo moderno. Embora a ótica interpretativa de Pevsner fosse, ela, moderna. Daí, o novo interesse por ele surgido ao longo dessas quatro décadas de pós-modernidade que vivemos.

O livro, pelo seu espírito, se divide claramente em duas partes. A primeira compreende os três primeiros capítulos, que vão do renascimento ao século 18. É uma visão equilibrada, buscando constituir a história da academia, ou das academias, na Europa.

A segunda compreende os séculos 19 e 20. Aqui, Pevsner toma partido. Mostra, com convicção, a passagem do Arts and Crafts inglês para a Bauhaus alemã. Pevsner tem um ponto de chegada: a natureza da arte no século 20, para ele, está no design e na arquitetura. 

Dessa maneira, ele ignora o papel essencial da França no século 19, justificado pelo fato de que a Académie des Beaux-Arts, depois de sua extinção por David, e sua ressurreição modesta em 1816, tinha deixado de exercer um papel importante.

Paul Delaroche - Hemiciclo da Escola Nacional de Belas-Artes de Paris - 1841
É um pretexto, porque Pevsner finge ignorar o papel essencial que a École des Beaux-Arts havia assumido, como herdeira da Academia. Pretexto porque ele não faz essa distinção quando trata da Inglaterra e Alemanha - analisando longamente as escolas de arte, privadas ou públicas, nesses países. E forte lacuna, porque a história da arte não saberia dispensar os confrontos entre as vanguardas, em particular o impressionismo, e o ensino acadêmico.

Honoré Daumier - O passeio do crítico influente - 1865

É que o livro condena visceralmente tanto o ensino artístico quanto o impressionismo "criminoso", que faria parte do espírito "arte pela arte", o contrário da arte aplicada, para a qual o pensamento de Pevsner tendia. Luta academia-vanguarda era um tema que não valia a pena tratar.

O Emblema da Academia de  Leonardo da Vinci em Milão. Gravura feita a partir de um desenho que seria de Leonardo(c. 1490–1500)

Uma questão admiravelmente tratada no livro é o percurso da luta que os artistas, pelo menos desde Leonardo, travaram contra o estatuto do artista como artesão, e como as academias exerceram um papel significante nessa luta, ao se oporem as antigas corporações medievais, que resistiram até o final do século 18.

Uma passagem de Pevsner me ajuda a compreender a significação de um quadro cuja iconografia mais detalhada, ao meu conhecimento, não foi ainda decifrada.

Antoon Claeissens - Marte vencendo a ignorância - 1605 - Groeninge Museum, Bruges


Não é difícil perceber, porém, na tela Marte vencendo a ignorância, de Antoon Cleissens, que nela figuram  sete figuras femininas claramente identificáveis com as Artes liberes, artes liberais (ou seja, dignas de um homem livre): o trivium e o quadrivium da antiguidade clássica. Elas reuniam as nobres disciplinas do espírito, ao contrário das Artes mechanicae, manuais, servis, e vulgares. A Retórica e a Gramática são tradicionalmente representadas com um livro na mão. A Dialética aparece no fundo, acompanhada por uma coruja, o símbolo da filosofia. Com o caduceu de Mercúrio na mão, assinalando seu vínculo com o comércio, surge a Aritmética, contando nos dedos. Ao lado dela, tendo a esfera armilar na mão, a Astronomia. Com um compasso sobre o globo terrestre e um esquadro aos pés, a Geometria. Enfim, em primeiríssimo plano, a música.

Há, porém, uma oitava figura feminina, vindo da direita e conduzida por um barbudo. Ela trás nas mãos a paleta e o bastão de apoio e medida do pintor. Ao contrário das outras, caminha com energia, e seu gesto é amplo.

Quem é o homem? A mulher, não há dúvida, é a pintura.

Ao tratar das academias nos Países Baixos, Pevsner assinala o papel essencial de Karel van Mander, escritor e pintor, no início do século 17. Mander publicou, em 1604, sua obra capital, O livro dos pintores, em seis volumes, inspirado em Vasari, e fonte capital para a história da pintura holandesa.

Página de rosto da primeira edição de O livro dos pintores, de Karel van Mander.

O primeiro volume se intitula, significativamente, Princípios da arte muito nobre da pintura. Pevsner cita o seguinte trecho:

"O Pictura, entre todas a arte mais nobre e mais esclarecida, mãe de todo ornamento, ama das artes mais nobres e mais honrosas, igual às suas irmãs que se chamam as Artes liberais. Tu foste a tal ponto apreciada pelos nobres Gregos e Romanos que eles acolhiam de todo coração, de onde viessem, teus artistas, e que os dirigentes e magistrados lhes concediam a cidadania. Oh séculos ingratos em que vivemos, nos quais, sob a pressão de borra-tintas incapazes, tantas leis infames, tantos regulamentos acanhados foram introduzidos em quase todas as cidades (exceto Roma), a nobre arte da pintura se transformou em corporação [...] Oh nobre arte de pintar [...] como fazem pouca diferença entre teus nobres servidores e aqueles que têm apenas um fraco luzir do que é a arte"

Pevsner prossegue:

"As reivindicações são as mesmas do que aquelas que se podiam ouvir na Itália desde Leonardo: a pintura deve ser considerada como Ars Liberalis, o artista era um cidadão honrado na antiguidade, é denigração falar de ofício manual. É interessante notar com que força Mander assinala a exceção romana. Ele faz certamente referência à Accademia di S. Luca,  cuja ideia já havia sido lançada quando ele deixou a Itália em 1577, mesmo se não existia ainda".

De qualquer forma, seria impossível que Mander não soubesse da fundação da Accademia di S. Luca, por Zuccari, em 1593. O lema dessa academia, Aequa Potestas significa igualdade de poder entre pintores e poetas.




Emblema da Accademia di San Luca, em Roma. A expressão latina Aequa Potestas quer dizer "O mesmo poder". Ela vem de um verso de Horácio - Pictoribus atque poetis/Quidlibet audendi semper fuit aequa potestas - "Os pintores e os poetas sempre tiveram o mesmo poder de ousar o que quisessem"

Entre o livro de Mander, que é de 1604, e o quadro de Claeissens, que é de 1605, a ligação é tão próxima que a pintura quase surge como uma ilustração do texto.

As interpretações iconográficas que descobri limitam-se a sugerir que Marte está vencendo a ignorância, que seria o Protestantismo. 

A interpretação do grupo central, na verdade, é enigmática por mais de uma razão. 

Primeiro, não sei de outra obra em que Marte esteja ligado ao florescimento das artes, papel que é sempre reservado ou a Apolo, ou a Vênus, porque é na paz que o saber e as musas desabrocham. Para arriscar uma interpretação, percebo que a pintura tem uma couraça de guerra. Não é difícil imaginar que os artistas e teóricos concebam o confronto entre pintor livre, e pintor obediente às corporações, como uma guerra. 

Segundo, o personagem que é derrubado por Marte tem enormes orelhas de burro, como Midas, que não sabia julgar a música de Apolo, ou seja, um ser tapado para as artes. Marte segura uma faixa de couro nas mãos, como se estivesse amarrando e neutralizando a burrice.

Tudo isso não parece muito coerente com uma interpretação religiosa.

Resta o homem barbudo que conduz a pintura. Seria ótimo se fosse o retrato de Mander. Infelizmente, não corresponde em nada à fisionomia do teórico, que também era pintor.



***

"Resultado das teorias de Schiller e da escola romântica, esse anti-academismo foi de rigor entre os artistas progressistas do século XIX; e, por volta de 1900, parecia geralmente evidente que um ensino artístico subvencionado pelo Estado não tinha mais razão de ser. Que interesse, de fato, apresentava a intervenção do Estado para artistas eram ligados, como os impressionistas, ao dogma criminoso da arte pela arte e, para um Estado liberal, onde estava a vantagem de apoiar financeiramente uma arte que apenas um pequeno grupo de amadores esclarecidos tinham condições de apreciar?" Pevsner


Sobre uma questão próxima, clique aqui: https://amavelleitor.blogspot.com/2018/03/o-retorno-da-grande-pintura.html

Comentários

  1. O "Renascimento de Dionísio" foi um projeto muito especial começado em 2016 e concluído em 2017. Eu acho que ele reflete, de certa forma, uma retomada de interesse pela pintura que explodiu no Brasil nos anos 80. Talvez seja a face "prática" do movimento "teórico" que você aponta no texto.

    A pintura remete ao mito de Dionísio. Segundo a mitologia, sua mãe, a mortal Semele, teria morrido enquanto estava grávida dele. Zeus, pai do feto, retirou-o do ventre da mãe e instalou-o na sua coxa para terminar a gestação. Desse forma, o mito de Dionísio seria um dos precursores da narrativa cristã, em que o deus nasce, ou vive, duas vezes.

    Eu fui inspirado por um amigo que estava passando por um severo tratamento contra o câncer. Por isso a figura está careca e sem sobrancelhas: ele já não tinha pelo nenhum! Apesar disso, ele veio durante algumas semanas ao meu ateliê e posou com firmeza. O sorriso da figura é o sorriso do meu amigo. Apesar de tudo, ele estava sempre radiante. Não ficou com medo do longo processo de execução, ainda mais longo porque eu trabalhei a partir de uma variação da técnica flamenga, da escola de Van Eyck, extremamente delicada, executada em camadas de transparência variável. A única coisa omitida foi a sonda por onde o remédio da quimio era injetado - omissão a pedido do modelo, que eu achei por bem respeitar.

    Espero que essa energia positiva possa emanar para as gerações que tiverem contato com a obra, quando eu, meu amigo e todos nós já teremos sumido há muito tempo da brisa da história.

    PS: Meu amigo se curou, e está lindo e com saúde de fazer inveja a um atleta.

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