Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução III - O lugar do artista

  Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução III - O lugar do artista

Tradução e ilustração - Jorge Coli

A arte o preenche [o século] por inteiro e o possui. Desde a Renascença, jamais época foi mais embriagada por ela, jamais foi percebida com tão eminente dignidade. Jamais se concedeu um tal lugar ao artista. "O artista é aquele que, de todos os homens, se aproxima mais de Deus" disse Renan, e é o próprio pensamento, é quase a fórmula de Alberti, no início do Quattrocento. O artista é, como o pensador, o homem livre por excelência, não submetido a restrição alguma; ele renova o mundo, ele o cria. No colapso das antigas classes, em meio a uma sociedade que racha as estruturas da vida de outrora, vemos se levantarem duas senhorias, uma de fresca nobreza e de autoridade recente, o industrial, a outra, que tem seus títulos e seus pergaminhos, mas que amplia seu prestígio e seu império, o artista. O século XVI tem o humanista, o XVII tem o honnête homme,  o XVIII tem o filósofo, o XIX tem o artista. Os poetas cantam sua predestinação, suas infelicidades, sua tempestuosa realeza. O século o adora e o respeita, menos como o mensageiro das verdades eternas que como uma força da natureza. Nas desordens de sua vida, ele reencontra, respira o lirismo das revoluções. Agrada-lhe ve-lo solto a través das sociedades como uma revanche da liberdade do homem: pelo menos, gosta de representá-lo assim e, de quebra, dotado de misteriosas virtudes divinatórias, da fulgurante penetração dos visionários. A ideia que ele possui do homem de gênio é a ideia do grande artista, impaciente, desigual, doloroso, sublime. 


Eugène Delacroix - Autorretrato com o colete verde - 1837


Isso conduz a muitos erros e a alguns obstáculos, mas também a uma rara qualidade de convicção, de nobreza sincera, na fantasia, no próprio realismo. Se é verdade que o artista, tal como o século XIX o modelou, nem sempre está conforme a essa visão exaltante, pelo menos, que respeito apaixonado pela arte, que gravidade magnífica! Mesmo entre os belos gênios calmos, há o tom do século e seus ardores sagrados.


Jean-Baptiste Camille Corot - A estrela da tarde - 1864

Mesmo entre os amáveis, alguma coisa a mais que o capricho e o gosto, um acento de humanidade,

Pierre-Auguste Renoir - Rosa e azul - As meninas Cahen d'Anvers ,1881

e, quando não sobra vigor bastante para as grandes paixões e os partos vastos, sobra calor e emoção suficientes para belas febres.

Léon Coigniet - Cena de julho de 1830 - 1830

Mesmo entre os espirituais, os delicados, os puros sensíveis, destacados de tudo fora a qualidade e o requinte das sensações, há os subterrâneos de um culto e os elementos de um misticismo esparso...



William Morris - O pomar - 1892




Assim, é natural ver, no século XIX, algumas disciplinas se voltarem para as épocas de efervescência e de fé, passar por cima da Renascença, anular, não apenas o academismo, que ele compreendeu mal, mas Rafael, datar dele frieza e razão. Sem dúvida elas não foram as primeiras a fazerem a "descoberta" da Idade Média: certo conhecimento da arte medieval e dos primitivos surge entre os teóricos do final do século XVIII e, antes deles, certos eruditos começaram a fixar as bases da filologia românica.
 

Jacques-Louis David - Personagem com roupa medieval - Fim séc. 18 (?)

Mas o século XIX fez dela sua coisa, deleitou-se com ela, primeiro com prudência, com reserva, depois mais fortemente. A restauração religiosa deu toda força a esse movimento, na Alemanha, com os Nazarenos,


Franz Pforr - Sulamita e Maria - 1810/1

na França, com alguns alunos de Ingres,


Hippolyte Flandrin - Decoração para a igreja de Saint Germain des Près - Entrada de Cristo em Jerusalém - 1842

e os místicos de Lyon.



Louis Janmot - Tríptico do mês de Maria - 1850


Na própria Espanha ele atrai alguns isolados.¹

Joaquín Espalter y Rull, Descanso na fuga para o Egito - 1843


Na Inglaterra, um inspirado, Ruskin, fixa, com força estranha e bela eloquência céltica, as liturgias do pré-rafaelismo, a doutrina do respeito da vida em tudo, uma estética que é também moral, sociologia, religião, erguidas contra as expressões convencionais e o maquinismo.

John Ruskin - Séfora (cópia de um detalhe de Botticelli) - 1874 


E, no entanto, é a mesma época que inventou ou formulou essa suprema regra de destacamento, a arte pela arte. Mas, liberando a arte de toda significação exterior, de toda missão, afirmando-o a si próprio e pondo-o como seu próprio objetivo, como sua suficiente e legítima razão de ser, não o poria no plano mais alto, no seu plano verdadeiramente divino? 

James Abbot Mcneill Whistler - Noturno em negro e doutrado - o foguete cadente - 1872/7 circa


O artista se evade de sua função social, cessa de ser um profeta, um chefe durante a tormenta, um benfeitor das almas, mas é para se tornar uma espécie de deus,  um deus a quem tudo é possível e permitido, cujo capricho é lei e que confere a tudo o que ele toca o privilégio da vida imortal.


Auguste Rodin - A catedral - 1908

Por isso, posto tão no alto, ele se separa. Chama a si os iniciados, mas ignora o vulgo. Não busca a mais ampla inteligibilidade,

Jozef Mehoffer - Estranho jardim - 1902

ou, se ele fala à multidão e, na língua da multidão, o sublime e o profundo de suas palavras não são para ela, mas só para ele próprio ou para alguns.

Paul Gauguin - Bom dia, Sr. Gauguin - 1889


Não é o traço maior da arte no século XIX, mas é, por suas consequências, um traço curioso. Sem dúvida, a arte cartesiana, expressão harmoniosa e lúcida das ideias claras, dirige-se a uma elite, mas essa elite não é um colégio de videntes, um cenáculo misterioso, ela representa com mais luz e pureza, uma escolha de qualidades ordinárias, quero dizer, comuns a todos os homens dotados de razão. Ela repugna ao extraordinário, ao espirito de especialidade. O artista do século XIX é, antes de tudo, exceção, e é pelo excepcional que ele se qualifica. Desse modo, vê-se alargar o fosso entre o público e ele. O desprezo do burguês é a expressão maior e mais comum desse estado de espírito.


Caricatura de "Le Charivari" - 1879 "Nova escola - pintura independente. Independente da vontade deles. Esperemos, por eles, que o seja."


Essa noção toma corpo e toma forma na medida em que se levanta e se completa a ideia do artista em si. Ela pode parecer abstrata; é característica, é útil. Como contragolpe, fortificava as preferências da média, favorecia o desenvolvimento de uma arte lateral, ao abrigo das revoluções e das novidades.

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¹ Focillon poderia também ter mencionado a permanência do espírito "pré-rafaelita" em Roma, com os Puristas (Minardi, Consoni) que seguiram os Nazarenos. Por eles, esse espírito "primitivo" atingiu o Brasil, com Victor Meirelles, que estudou em Roma com os Puristas.

Victor Meirelles - A degolação de São João Batista - 1855















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