O mistério Rembrandt

Rembrandt van Rijn não é propriamente um pintor de esfinges. Ainda assim, como em um desafio, alguns de seus quadros incitam criadores em outros campos artísticos especialmente devido à força enigmática.

A ronda noturna (1642), de Rembrandt, no Rijksmuseum (foto de Urban Capture, 2013)

O cineasta inglês Peter Greenaway se obcecou por A ronda noturna. Precisou de dois filmes (Nightwatching e Rembrandt’s J’accuse, de 2007 e 2008) para conjeturar que a pintura é uma incriminação. Por meio dela, seriam apontados os culpados de um assassinato, mas não só: a queda de prestígio social, artístico e econômico do artista holandês, segundo Greenaway, se daria como vingança de alguns retratados.

Peter Greenaway em shotscreen de seu filme-documentário Rembrandt’s J’accuse (2008)

Os argumentos são fracos. Os filmes, porém, são um exercício envolvente de cinema e também uma defesa dos poderes maiores da imagem se comparados aos do texto, prova (até mesmo involuntária, pois Greenaway não consegue sustentar suas hipóteses) das deficiências generalizadas de interpretação visual no mundo de hoje.

W.G. Sebald (foto de Jerry Bauer)

Na literatura ficcional, o alemão W. G. Sebald toma da Lição de anatomia do Dr. Tulp. É também um retrato coletivo, como a Ronda noturna, encomendado para exibição de dotes.

A lição de anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt (óleo sobre tela, 170 x 216 cm, Mauritshuis, Haia)

Há nele, além de médico e discípulos, o cadáver de um ladrão, Adriaan Adriaanszoon, vulgo Aris Kindt, executado horas antes da aula pública e espetacular registrada por Rembrandt. Sebald expõe, em análise fina, o que poderia ser um ponto de vista do pintor. Está em Os anéis de Saturno, de 1995. Eis um trecho:

E essa mão é um caso particular. Não só está em grotesca desproporção quando comparada com a mão mais próxima do observador, está ainda totalmente deformada em termos anatômicos. Os tendões expostos, que, segundo a posição do polegar, deviam ser os da palma da mão esquerda, são os do dorso da direita. Trata-se, portanto, de uma pura reprodução escolar, retirada obviamente sem muita reflexão do atlas anatômico, o que transforma essa pintura, de resto fiel à realidade, se assim podemos dizer, na mais crassa deturpação exatamente no centro de seu significado, lá onde as incisões já foram feitas. É muito pouco provável que Rembrandt tenha aqui se equivocado por uma razão ou outra. Antes, parece-me deliberada a falha na composição. A mão disforme é o sinal da violência cometida contra Aris Kindt. É com ele, a vítima, e não com a guilda que lhe comissionou a obra, que o pintor se identifica. Somente ele não tem o rígido olhar cartesiano, somente ele o percebe, o corpo extinto e esverdeado, somente ele enxerga a sombra na boca semiaberta e sobre o olho do morto.” (Companhia das Letras, 2010, tradução de José Marcos Macedo, páginas 25 a 26)


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