Precisamos falar sobre o mercado de arte brasileiro

         De tempos em tempos, as polêmicas sobre atribuição de obras de arte voltam à baila. O caso mais recente da venda da obra Salvator Mundi, atribuída a Leonardo da Vinci, pela prestigiada casa de leilão Christie’s, em Nova York, é prova disso. A obra de arte mais cara já vendida no mundo envolveu um espetáculo midiático internacional enquanto a sua autoria era discutida, e já foi objeto até de documentário, Le Sauveur à vendre, dirigido por Antoine Vitkine.

        No caso brasileiro, é Aleijadinho quem ocupa o lugar central nas polêmicas sobre a autoria de suas obras, que já chegou a nível judicial no início dos anos 2000. O catálogo O Aleijadinho e sua oficina, assinado por especialistas do calibre de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, chegou a ser impedido de circular por meses nas livrarias por liminar da justiça brasileira, após um colecionador sentir-se prejudicado pela publicação. Com pesquisa cuidadosa, o livro revia a atribuição de obras a Aleijadinho. Em 2018, uma grande exposição de obras atribuídas ao artista no MASP reacendeu o debate.

        Longe das grandes casas de leilão, dos famosos museus e das notícias nos jornais, operam-se cotidianamente casos semelhantes, com obras e artistas menos conhecidos do público. Quem acompanha os leilões brasileiros sabe disso muito bem: não é incomum nos depararmos com pinturas questionáveis assinadas por artistas de renome; datações absurdas que fazem artistas voltarem do Além, ou impropérios absolutamente mal realizados “atribuídos” a este ou aquele artista. Quanto aos preços, há para todos os gostos. Desde casos em que o baixo valor parece condenar a própria autoria, quase como um mea culpa dos leilões, até preços estratosféricos, inadequados mesmo para as expectativas de vendas de obras autênticas.

       Revoltante é notar o quanto o avanço no trabalho de especialistas acaba estimulando indiretamente esses processos. É fato que o estudo particularizado de artistas valoriza suas obras no mercado de arte. Consagração gera especulação. Pior que isso, no entanto, é verificar o quanto ela também pode gerar a falsificação, extrapolando os limites entre ética e lucro (se é que existem). Recentemente, uma pintura atribuída à artista brasileira Abigail de Andrade (1864-1890) apareceu em uma casa de leilão. Um belo garoto com uma bola, pintado segundo a voga europeia da época.


Há alguns anos que a artista tem recebido alguma atenção de pesquisadores, como Ana Paula Cavalcanti Simioni, que se debruçou sobre a sua produção e é certamente a maior referência para o caso. O interesse científico e a análise cuidadosa da carreira de mulheres artistas no Brasil do século XIX, sistematicamente obliteradas pelo seu tempo e pela historiografia da arte, vem permitindo agora que conheçamos melhor as suas obras, expostas cada vez mais nos museus. Tais artistas têm chamado a atenção do público, e também do mercado.
Para quem conhece a produção de Abigail de Andrade em particular, sabe o quanto ela é em reduzido número, quase integralmente em coleção privada. Uma obra como essa, assinada e datada pela artista, é uma verdadeira raridade! Ou melhor, seria. Quando recebi a imagem da pintura através de uma colega, ela me pareceu estranhamente familiar. A memória ocular me dizia que um artista de uma geração posterior, Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), havia feito qualquer coisa parecida. Nessas horas, a pesquisa na internet não falha: em minutos já tinha encontrado o que procurava. 

A mesmíssima obra havia sido leiloada por outra casa alguns anos antes, aparentemente ainda conservando o toque de verniz que tornara fosca as suas tintas no decorrer dos anos. Não há dúvida de que as duas sejam a mesma. Um olhar criterioso, atento ao detalhe, percebe idênticas marcas do tempo nas duas imagens.

Além disso, a obra de Timótheo, datada de 1918, mediria 90 x 50 cm segundo o leiloeiro. Fora assinada na margem inferior direita. Já a de Abigail, datada de 1889, possuiria 70 x 50 cm, e fora assinada na margem esquerda. 

Como desaparecer com uma assinatura e incluir outra? Cortando-a, reenquadrando-a, e assinando-a de novo, apocrifamente.


        Vinte centímetros da obra de Timótheo sumiram na obra de Abigail. A tela teria sido cortada ou o falsário teve o pudor de apenas escondê-la por trás da moldura? Não sabemos. Mas o menino com a bola definitivamente perdeu as suas calças. E os leilões, por decorrência, e cada vez mais, a sua credibilidade.
        Vinte centímetros escondem uma grosseira falsificação. Dentre quantas outras?

Comentários

  1. Excelente João. Estamos com uma epidemia de falsificações e atribuições de toda ordem. Sigo regularmente os leilões por interesse profisisonal, curiosidade e, é claro, para buscar imagens de arte brasileira do século XIX e do primeiro XX. Fico muito especialmente atento às obras de Pedro Weingärtner, artista que é de meu especial interesse. Pois tenho um arquivo assustador de obras atribuídas a P.W. e é espantoso como são evidentes as incoerências estilísticas, as cronológicas, as temáticas etc., além daquelas que são notórias e grosseiras falsificações, por vezes de um primarismo constrangedor. Evidente que me pergunto como uma casa de leilões "assume" essas autorias sem escrúpulos ou qualquer constrangimento, demonstrando um desprezo absoluto pelos compradores, colecionadores e pelos estudiosos.

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    1. Obrigado, professor. De fato, é uma epidemia. Acompanho de perto com a Heloísa as obras do Helios e poderíamos dizer o mesmo em relação a ele, tal como o Pedro. Tem de tudo. Nesse caso em especial, me chama a atenção o fato da casa de leilão não realizar algumas consultas antes. Foram menos de 5 minutos para encontrar a obra.

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  2. Situação difícil! Já tinha visto falsificação grosseira, atribuição de autoria como escapismo para uma obra falsificada, mas mutilar uma obra e enfiar uma assinatura, é triste de mais. Helios Seelinger era tão antenado que suas assinaturas têm combinações entre nome e sobrenome. Só conhecendo bem as fases e os modos dele assinar a cada tipo de obra dá pra verificar a autenticidade da assinatura. O esforço que já encontrei em imitar o formato da letra dele como se isso bastasse para passar a quem conhece por sua assinatura, é tragicômico. Eu fico indignada com esse 'mercado' sombrio de falsificação, geralmente serve para outros crimes além de enganar o comprador, o que deve ser estelionato. Há um projeto de lei para criminalizar de modo específico as falsificações de obras de arte. Mas parece que não despertou muito interesse em se avaliar a validade da proposta ou se necessário modificar o que fosse cabível. É muito lamentável toda essa situação.

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  3. Situação difícil! Já tinha visto falsificação grosseira, atribuição de autoria como escapismo para uma obra falsificada, mas mutilar uma obra e enfiar uma assinatura, é triste de mais. Helios Seelinger era tão antenado que suas assinaturas têm combinações entre nome e sobrenome. Só conhecendo bem as fases e os modos dele assinar a cada tipo de obra dá pra verificar a autenticidade da assinatura. O esforço que já encontrei em imitar o formato da letra dele como se isso bastasse para passar a quem conhece por sua assinatura, é tragicômico. Eu fico indignada com esse 'mercado' sombrio de falsificação, geralmente serve para outros crimes além de enganar o comprador, o que deve ser estelionato. Há um projeto de lei para criminalizar de modo específico as falsificações de obras de arte. Mas parece que não despertou muito interesse em se avaliar a validade da proposta ou se necessário modificar o que fosse cabível. É muito lamentável toda essa situação.

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    1. É isso, por parte do Estado, falta legislações específicas. Mas as casas de leilão também devem incorporar condutas mais transparentes para evitar casos como esse. Quando uma casa peca, as honestas também saem prejudicadas.

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  4. João, parabéns pelo excelente artigo. Infelizmente não temos uma legislação que coíba os maus comerciantes do mercado de arte. Como marchand especializado em gravuras, passo muitas vezes por essa situação desagradável de comprar algo falso e logo em seguida devolver. É incrível como os comerciantes que aceitam em seus leilões obras falsas não conseguem enxergar que estão dando um tiro no próprio pé, com a perda de interesse dos investidores de arte e a desvalorização da obra do artista. Di Cavalcanti, Guignard, Burle Marx, Serpa, Dacosta, Guinle, enfim, vários artistas que cada vez mais são falsificados e consequentemente tendo sua obra desvalorizada.

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    1. Obrigado, Julio, pelo seu testemunho importante. Tenho a certeza que também para aqueles que lidam com a venda das obras é difícil identificar a falsificação. Marchands e leiloeiros tem olhos para isso! Mas creio, como você disse, que haja aqueles que atuem deliberadamente com as obas falsas. Isso é péssimo para o próprio mercado de arte.

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  5. Querido João, muito bom seu artigo! Impressionante esse caso! Importante sua contribuição expondo essa falsificação que retirou a autoria de Arthur Timótheo da Costa para substituir pela de Abigail. Chega ao ponto da gente desconfiar até da primeira atribuição... talvez já fosse uma falsa atribuição? Você tem alguma hipótese sobre isso?

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    1. Muito obrigado, professora! É realmente impressionante. Eu também, ao fim, fiquei me perguntando se a obra sequer fora de Arthur. Mas não tenho condições de argumentar nesse sentido. Em todo o caso, desconfio! E o mais incrível é que um Arthur Timotheo já valeria um tanto!!!

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  6. João, você sempre nos nutrindo com reflexões importantes e urgentes! E com pérolas como esta e muitas outras. O Timótheo está sendo um bem explorado nesse sentido, né? Assim como Almeida Júnior... nunca me esqueço daquele Pigmalião feito do além... que era uma cópia do Lucílio do MDJVI! O estudo "feijão com arroz", atribuição, datação, estudo estilístico, repertório de exposições etc., infelizmente é desprezado por muitos colegas do meio, ficamos às cegas nesse mundo louco dos leilões... Mas há também o caso das cópias para estudo... não poderia ser o caso dessa tela? É muito "colada" na anterior para acolher essa hipótese, não é mesmo?

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    1. Olá! Concordo totalmente. A hipótese da cópia quase me fez não publicar o texto. Mas eu não acredito que seja possível tratar-se de duas obras. A qualidade das imagens não ajuda, é verdade, mas existem algumas imperfeições nos mesmos lugares. Agora, é muito provável que a intervenção tenha sido pictórica também, para além do trabalho com o verniz...

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  7. Excelente artigo João. Essa mesma obra foi devolvida por um comparador no ano passado. Mas pasmem, há um carimbo de um terceiro artista no verso. A única certeza é de que não se trata de uma pintura da Abigail.

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  8. Caro João, grato por palavras tão pertinentes, necessárias. É urgente moralizar o mercado, e logo.

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