Eric Fischl e o hedonismo


Foi em 1977 que a voz estrídula dos Sex Pistols apareceu com energia. O lema do ‘no future’ estampado no refrão de God Save the Queen parecia colado ao movimento Punk Rock. Embora se tratasse de um ‘sem futuro’ controlado, ele era possível e se encarnava no próprio movimento. Essa cultura também é aquela do “I-don’t-care”, o alvo é o apreço não pela qualidade dos músicos ou das letras, antes é por uma realidade crua, sem adereços falsos. O fato, por exemplo, de Alice Cooper jogar golfe era inaceitável nessa lógica. O desprezo por tudo aquilo que poderia ser apresentado como ordem, niilistas, mas também hedonistas. É preciso aproveitar o hoje, o agora. O amanhã, pouco importa, pois talvez ele nem sequer exista.

Uma parte dos trabalhos de Eric Fischl se insere, a meu ver, neste sistema. A adolescência aparece de diversas formas em suas telas entre as décadas de 70 e 80. Bad Boy, Sleepwaker entre outras apresentam o voyeurismo, a masturbação, o sexo etc. os personagens possuem sempre a carnação aparente com marcas de roupas de banho, o corpo contemporâneo é importante em suas obras. E, em alguma medida, lembram os corpos realizados por João Calixto na mesma década. Mas The old man’s dog and the old man’s boat me parece elucidativo do escrito acima. 

Eric Fischl. The old man's dog and The old man's boat. 1982


As linhas do corpo feminino nu se sobressaem. Os cabelos parecem pesados, úmidos e o corpo a se secar com as carícias do sol. Caprichosamente, as linhas das ancas escapam do colchão azul-esverdeado com a proeminente marca do biquíni, vestígios de convenções sem utilidade naquele espaço. O dálmata, leal e fiel, parece ouriçado e tenso. Sua posição entre as pernas da garota é sugestiva. Atrás, dois garotos olham com certa atenção jocosa algo que escapa às vistas do espectador. A posição deles é estranha, como posada. Corpos nus, as marcas das roupas também estão presentes. À direita, outro homem aparentemente mais velho. Está encostado, o torpor é vencido na próxima golada da latinha. Diferente dos outros personagens, cada qual no seu mundo, este nos olha. Nos coloca imediatamente na tela, fazemos parte daquela tarde quente; estamos todos na mesma lancha. O enquadramento corrobora, vemos a proa e nosso olhar é um pouco elevado em relação às outras pessoas.

Falta uma personagem, a mais dissonante. A figura feminina à extrema esquerda da composição. Ela é a única vestida com seu biquíni. Não vemos seu rosto, está encoberto pelos cabelos que sem muita fúria se esvoaçam. Dentro daquela paz e ‘joie de vivre’ algo está fora do eixo. Ela porta também um colete salva-vidas. Sua vara de pescaria está no chão apoiada entre os dedos do pé direito cuja linha é esticada pela mão. O gesto com o braço direito e sua mão aponta para fora da lancha em direção ao mar agitado e às nuvens buliçosas. O futuro próximo é sombrio, perigoso e potencialmente mortal. Não existe horizonte possível, tudo é ocultado.

Com justeza essa obra de Fischl é lembrada quase sempre em conjunto com Le radeau de la méduse de Géricault e The Gulf Stream de Homer. Ambas apresentam mares revoltosos e a luta para se manter íntegro apesar das energias contrárias. A composição é mais próxima de Géricualt, em Fischl não há desespero ou esforço para conter a adversidade, salvo o gesto tímido da garota, a inação é próxima a de Homer. Não interessa,”i-don’t-care”. Não importa se o barco vai naufragar, não interessa se uma tempestade vai tudo engolir. O relevante necessariamente é o prazer que o agora pode proporcionar. No future!

Théodore Géricault. Le radeau de la méduse. 1818-19.


Winslow  Homer. The gulf stram. 1899.

Duas canções próximas temporalmente desta obra de Fischl fortalecem a visão hedonista e niilista, um mundo quase antagônico do nosso. Na música ‘Detroit Rock City’, o acidente de carro é inevitável, não há mais tempo para retorno, mas ‘Hit top speed but I'm still movin' much too slow / I feel so good, I'm so alive’. 

Ou em uma das super melancólicas canções de The Smiths, se houver acidente com o carro, pouco importa, pois aproveitamos aquele momento preciso:


And if a double-decker bus / Crashes into us / To die by your side / Is such a heavenly way to die / And if a ten-ton truck / Kills the both of us / To die by your side / Well, the pleasure - the privilege is mine.

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