A morte é uma doença social



Há obras que, por serem grandes obras, são como vertentes. Diante de uma delas, o amante das artes fica imobilizado enquanto a mente se divide em vão para dar conta das inúmeras e sucessivas narrativas de imagens, conectadas no tempo e no espaço, que a obra mestra é capaz de verter. Tal é a obra do uruguaio Juan Manuel Blanes, Un episodio de la fiebre amarilla en Buenos Aires, de 1871, que já foi citada anteriormente aqui.

Juan Manuel Blanes: Un episodio de la fiebre amarilla en Buenos Aires, 1871. Museo Nacional de Artes Visuales, Montevidéu.

O título denuncia o caso ocorrido, que matou milhares na capital argentina aquele ano. Dois homens, elegantemente vestidos, acabam de entrar em uma casa humilde, assolada pela peste. Veem diante de si um bebê tateando o seio à procura do leite da falecida mãe, estirada no piso tão frio quanto seu corpo sem vida. Os detalhes da cena permitem-nos imaginar o ocorrido. O corpo do pai, rígido sobre a cama como em um caixão no velório, sugere que morrera há mais tempo, enquanto a mãe parece ter esmorecido ainda em ação, derrubando alguns utensílios enquanto tombava ao chão. Seu corpo já esverdeado cheira a putrefação.

A gestualidade das figuras no quadro, assim como a iluminação, é absolutamente expressiva, mas calculada. Isso fica ainda mais evidente quando comparamos a obra a um de seus esboços prévios. Tudo na pequena tela é mais dramático: os homens que acabam de abrir a porta naquele exato instante, a surpresa do menino junto a eles, a dureza do corpo feminino e cadavérico atravessado em diagonal, os olhos fundos para o teto, e o braço pendente do corpo masculino, remontando a Cristo nas imagens de Pietà.

Juan Manuel Blanes: Boceto (La fiebre amarilla), 1871. Museo Nacional de Artes Visuales, Montevidéu.

Na obra final, o drama foi controlado, como que recalcadas as paixões internas do pintor em denunciar a crueldade da vida. Tudo é silencioso, lento, solene. A porta foi aberta, a morte, anunciada. É preciso respeitá-la. Um dos homens tira a cartola, o outro, imóvel, une as mãos em piedade pela criança órfã. A expressão do garoto encostado à porta é a chave da narrativa. Em sua inocência de menino, quando os sentimentos sobre a vida são mais puros, mas a vivência já o ensinou que o mundo nem sempre é alegre, conecta os tempos entre a primeira infância do bebê e a maturidade dos homens. Seus pés se contorcem diante do fato, as mãos para trás denunciam a impotência, os olhos cristalinos para os mais velhos procuram respostas: o que será dessa pobre criança?

Os especialistas sobre a obra afirmam que o fato é mais ou menos verídico, e que os dois homens representados podem ser identificados. Pertenciam à elite e eram membros da Comissão Popular da Salubridade, que buscava prestar auxílio aos necessitados durante a epidemia. Blanes eleva-os a heróis civis, mártires, sobretudo porque os dois, Manuel Argerich e José Roque Pérez, também faleceram vítimas da mesma enfermidade em 1871. A obra assume então um valor moralizante, ensina os espectadores acerca da conduta correta de um cidadão.

Dissera eu no princípio que grandes obras são como vertentes. Pois foi a pintura de Blanes que me veio de imediato à cabeça, em um desenrolar de conexões entre imagens, quando encontrei este desenho de Raul Pederneiras, famoso caricaturista brasileiro, nas páginas da Revista D. Quixote. Eram os tempos da gripe espanhola, que assolava o Rio de Janeiro em 1918. O governo se mostrava incapaz de tomar atitudes contra a pandemia, a ciência desconhecia o vírus e as formas de contágio. As ruas estavam desertas, a cidade desabastecida de gêneros alimentícios. Faltavam caixões, valas e coveiros para o enterro dos mortos.

 Raul Pederneiras: A maior peste. Publicado na Revista D. Quixote, n. 78, 6 de novembro de 1918.

O recurso de Raul aos riscos frenéticos feitos com o nanquim reforça, nas paredes e assoalho, a carência da habitação. Há um tanto de sombrio e sujo por trás dos hachurados. Em uma casa pobre, uma família sofre com a doença. Aqui, a cena se repete, mais ou menos, como no quadro de Blanes. Dois homens, agora não tão elegantes, invadem o lar, dirigindo-se diretamente àquele que deveria ser o pai de família, fisicamente debilitado pela gripe. Seu olhar é dolorido, subserviente, amedrontado. O apoio maternal da senhora às suas costas é ineficaz para a sua autoconfiança, e ela sabe disso, compartilhando aquela dor. Ao redor de ambos, na cama, o restante da família. A esposa ajoelhada é surpreendida pela fala de um dos homens, o proprietário da habitação onde moram:

- Quero cá saber de influenza! No fim do mês venha o cobre do cômodo e da conta da venda, se não ponho vocês com os troços na rua! 

Mas como? Enfrentando a doença, como garantir a renda para o pagamento das dívidas? Entre os dois homens, no entanto, não há nenhum sinal de solidariedade. Um representa a violência, capaz de arrancar a família daquela precária habitação. O outro se assemelha a um tipo mafioso, daqueles que sabem bem como explorar monetariamente as desgraças alheias e que não têm o sono afetado por isso. Raul sabe bem como fazer com que o espectador escolha o lado certo da história, o lado dos pobres. A sensibilidade por eles é ainda mais aguçada em nosso peito pela presença das crianças no cômodo: a menina de pé, quase em choro, o pobre menino, cabeça repousada no duro baú da família, doente decerto, mas por gripe ou por fome? E no meio da cena, o bebê nu ao chão, exposto à doença, é também exposto à “maior peste”: a desigualdade social, a maior das crueldades humanas.

Jaguar: O pandemônio da pandemia. Charge publicada na Folha de São Paulo, 03 de abril de 2020.

Juan Manuel Blanes e Raul Pederneiras partem de caminhos completamente contrários para enfrentar visualmente o problema da doença e das diferenças de classe. Blanes, pintor de história, avançando pela grande pintura busca a seriedade e inspira o exemplo na ação heroica dos homens burgueses. Ele aborda a desigualdade implicitamente, mas nada em sua obra propõe a mudança da realidade social. Já Raul, caricaturista, partindo de um desenho publicado em uma revista de humor, características que por si implicavam um valor estético menor à obra, põe o dedo em nossa ferida social. Em um espaço cujo pressuposto era o riso, os leitores da D. Quixote devem ter fechado o semblante diante de seu poderoso desenho. Nele, os heróis são os sobreviventes. Nada mais moralizante, como a obra de Blanes.

Há alguns dias, em uma live no Youtube o microbiologista Atila Iamarino debateu sobre as nossas pestes do passado com o historiador Sidney Chalhoub, que lembrou aos espectadores a frase secular do médico alemão Rudolf Virchow: “Der Tod ist eine soziale Krankheit” – a morte é uma doença social. Era exatamente isso que dizia Raul Pederneiras em 1918, através de uma imagem.


Mais sobre o assunto:

(1) COSTA, Laura Malosetti. Los Primeros Modernos. Arte y Sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001. Disponível online.
(2) GOULART, Adriana. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist. Ciênc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, 2005. Disponível online.

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