O beijo de Flaubert

Agalmatofilia não é lá uma palavra muito bonita. Pigmalionismo não é muito melhor. Mas uma e outra, sinônimos, definem o sentimento erótico de atração por uma estátua.


O jovem Gustave Flaubert, com 24 anos e na primavera de 1845, fez uma viagem para a Itália. Lá, se depara com uma cópia de Amor e Psiquê de Canova. Em suas notas, escreve: "Amor e Psiquê de Canova. Nada olhei do resto da galeria. Voltei a ela várias vezes; e, na última, beijei na axila a mulher em êxtase que estende ao amor seus dois braços de mármore - e o pé! e a cabeça! o perfil!"


"Que me perdoem, depois de muito tempo foi meu único beijo sensual; era algo mais ainda, eu beijava a própria beleza, era ao gênio que eu consagrava meu ardente entusiasmo. Corri para a forma, sem quase pensar no que ela dizia. Definam, fazedores de estéticas, classifiquem, etiquetem, limpem bem as lentes de seus óculos, e digam porque ela me encanta."




É o escritor romano Ovídio quem conta em suas As metamorfoses a grande história de paixão por uma estátua. Pigmalião, escultor habitante de Chipre, vendo como se comportavam as abomináveis Propoetides, mulheres que viviam na ilha, prostituindo-se e fazendo sacrifícios humanos em que devoravam as vítimas, decidiu criar no marfim uma mulher ideal. Esculpiu então a adorável Galatéia e se apaixonou por ela. Pediu a Afrodite que lhe dê uma esposa semelhante à escultura. Comovida, a deusa transformou-a numa jovem de carne e osso.





Girodet pintou, em 1819, uma obra-prima: Pigmalião, maravilhado e apaixonado, vê sua estátua tornar-se humana. É o momento da transformação: diante de uma nuvem luminosa, Galatéia adquire aspecto e cores de um ser vivo: apenas seus pés são ainda de marfim. Um Amorzinho está prestes a unir as mãos do casal.

Comparando com o quadro em que Laurent Pécheux (1784) dá a Galatéia a pose da Vênus pudica tal como a antiguidade havia fixado - uma das mãos  cobrindo o seio e outra o sexo - podemos imaginar que a Galatéia de Girodet estivesse na mesma pose, e foi o pequeno Cupido que lhe retirou a mão para que ela encotrasse a de Pigmalião.





Lagrenée, em 1781, concebeu a cena, com um comovente Pigmalião de joelhos e com sutís, levíssimos, toques de dedos.




Vasari conta, na sua biografia de Bronzino, o seguinte: "pintou Bronzino Pigmalião, que faz sua oração a Vênus, para que a sua estátua, recebendo o espírito, viva e se torne (como aconteceu segundo as fábulas dos poetas) de carne e de osso".  A admirável pintura mostra Pigmalião ajoelhado, com as mãos juntas; no altar, o sacrifício de um boi; e Galatéia com aspecto humano (1529 -30).



Em 1878, Burne-Jones pôs também seu Pigmalião de joelhos, diante da geometria rebuscada de uma arquitetura complexa. Não há diálogo entre os olhares; antes, cada um parece imerso em melancolia interior. (Para as duas séries completas da história, pintadas por Burne-Jones, clique aqui.






Régnault, em 1786, retrata a cena um pouco antes da metamorfose. Seu Pigmalião tem um gesto amplo, quase heróico, e sua Galatéia segura uma pomba, o pássaro de Afrodite.




Pigmalião é o patrono da escultura e dos escultores. Jacques Stella, esplêndido pintor do século 17, transformou a cena numa alegoria. Se Afrodite mudou a estátua em mulher viva, é Atenas que preside o ofício do escultor. É ela, de capacete e escudo, coroada de louros,  quem assiste Pigmalião em seu trabalho. Amorosamente, o escultor dá o acabamento no seio de sua Galatéia, linda e melancólica:






 Alguns escultores dedicaram-se a celebrar o mito que exalta a arte que é a deles. Falconnet, em 1763:




Ou Rodin que, em 1908-8, faz o casal emergir da matéria pétrea:




Mas o tema tem um caráter narrativo que convém melhor à pintura, capas de sugerir mais fortemente sua natureza erótica. Léon Gérôme acentuou o impacto sexual, em 1890, atribuindo a Galatéa as formas e o penteado de sua época. Pigmalião não hesita em agarrar o corpo nu, que vemos de costas:




Ou de frente, pelo mesmo Gérôme:




E como Gérôme era também escultor, por que não dar relevo à cena?



Gérôme pintou-se a si mesmo esculpindo. A identidade da pose do modelo e da obra sugere a sedução da amalgatofilia.



Daumier é cáustico com o mito. Mal Galatéia acorda, pede uma pitada de rapé a Pigmalião...



O amor pelas estátuas é, na história das artes, bem mais frequente dos homens pelas mulheres. As esculturas masculinas atraentes não tiveram seu mito transformador. Foi Paul Delvaux quem inverteu a situação em seu estupendo  Pigmalião, de 1930:




Enfim, em 1748, Rameau compôs uma pequena maravilhosa ópera-balé,  em um ato, intitulada Pigmalião. O libreto de  Ballot de Sauvot é estupendo. Gosto muito das primeiras palavras da estátua ao adquirir vida: "Que vejo? Onde estou? E o que penso? De onde me vêm estes movimentos? Que devo acreditar? E por meio de qual poder posso exprimir meus sentimentos?"

Aqui, a ópera completa:


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