Arte é entretenimento e não abro.

Uma vez tive a imprudência de afirmar, diante de uma platéia culta, que toda arte é entretenimento. O protesto foi tão grande, que eu nem consegui completar dizendo que, se toda arte é entretenimento, nem todo entretenimento é arte.

Eu me entretenho jogando crapô, mas é claro que isso não é arte. Mas eu me entretenho também lendo romance, poesia, vendo pintura, ouvindo Debussy ou Bach. 

A arte está aí, antes de mais nada, para nos entreter. A ideia de cultura é tão elevada, porém, que se eu me divirto com alguma coisa culta, para muita gente parece que algo está errado. Lembro-me da fabulosa comediante britânico-canadense Anna Russell, num número em que imitava o discurso de uma rica patronesse americana, apresentando o programa de música de câmara organizado por ela: "Muito esforço, muito trabalho, sem prazer algum". 

É uma convicção corrente que cultura, para ser cultura, deve ser coisa chata. E a desconfiança de que, se não for chata, não é cultura.

O prestígio da cultura, e as convicções que o acompanham, faz com que muita gente ature nos teatros, nas salas de concerto, no cinema de arte, nos museus, horas do mais absoluto tédio, "sem prazer algum". É verdade que há obras culturais exigentes, e pedem a obtenção de algumas chaves para serem desfrutadas. Mas, uma vez as portas abertas, antes de qualquer coisa, as obras nos entretém.

Primeiro, há grandes obras que se definem como entretenimento. Um Divertimento de Mozart, A megera domada, de Shakespeare, foram criados, antes de tudo, para divertir. Diversão não impede profundidade.

Jordaens deve ter sido o mais bem humorado dos pintores. Seus quadros nos divertem, enquanto revelam não apenas uma estupenda maneira de tratar a luz e as matérias, como uma visão crítica, e sem maldade, de uma sociedade que sabia rir de si própria


Jacob Jordaens - O velho beberrão - 1640 - 1643

Os quadros de alcova, pintados por Fragonard, são divertimentos eróticos.

Honoré Fragonard - Jovem com seu cão - 1770-75 circa

Quando Valerio Cigoli esculpe o seu Anão Morgante, para os jardins de Boboli, quer surpreender, provocar o riso, pela ironia sobre o tema do nu heroico que sua obra propõe.

Valerio Cigoli, ou Cioli - O anão Morgante - 1560


E para subir aos píncaros da pintura, as obscenidades inseridas na Galeria de Psiquê, na Farnesina, decorada por Rafael Sanzio tinham um sentido de fecundação mas, é claro, de provocar o riso em quem as descobria.



Giovanni da Udine, sob a direção de Rafael Sanzio. Decoração da Galeria de Psiquê. 1517

Está claro, existem artistas sérios, que não gostam de brincadeiras. Almeida Prado dizia que os Quatro cantos sérios, de Brahms, eram um pleonasmo. Porque Brahms é a quintessência do sério. Esses Cantos, no entanto, enlevam e fazer o tempo passar num piscar de olhos, porque nos entretém.

O que torna essa discussão ainda mais interessante (pelo menos eu acho) é que, se assumimos esse axioma: "toda arte é divertimento", a fronteira entre o que é divertimento e o que é arte torna-se fluida.

Muitas vezes, o tempo, esse grande artista, parafraseando Marguerite Yourcenar, se encarrega de revelar o artístico que estava oculto no modo contemporâneo. Dou um exemplo. Ninguém vai dizer que um carrossel no parque de diversões é arte. Pois bem: os animais esculpidos no passado para carregarem crianças revelam uma beleza surpreendente. Hoje, são disputados por colecionadores, há museus para eles.

Cabeça de cavalo de carrossel, sem data

Essa discussão é muito fecunda no campo do cinema. Divertimento"de massa", ele precisa do label "filme de arte" para garantir sua qualidade artística e espectadores cabeça. A velha revista Cahiers du Cinéma induziu um terremoto ao afirmar que cineastas como John Huston, Alfred Hitchcock ou John Ford eram grandes artistas criadores. John Ford, por sinal, se divertia muito com isso. Ele dizia que só filmava para ganhar dinheiro.


John Wayne em No tempo das diligências, de John Ford - 1939



Os críticos franceses tinham razão. Pois  o cinema é uma arte, como a música de Mozart ou de Brahms, como a pintura de Rothko ou de Jordaens. E é péssimo jogar fora a maior parte dos filmes sob pretexto que são apenas "divertimento". 

Isso é coisa de gente inculta. O amor pelo cinema engendra uma cultura específica, e quem está mergulhado nela sabe que essas distinções não fazem sentido. É a incultura que procura muletas classificatórias.


Tudo isso porque vi ontem uma comédia musical inglesa juvenil que poderia entrar na categoria besteirol. Summer Holiday, ou, no Brasil, Tudo começou em Paris. Data de 1963, foi dirigida por Peter Yates - que alguns críticos azedos tratam de mere enterteiner, esquecendo-se de seu Bullit (1968), determinante nas inflexões que esse filme determinaria sobre o gênero policial.

Summer Holiday não se importa com a coerência, nem mesmo em amarrar as piadas numa história plausível. Três rapazes reformam um ônibus urbano inglês para irem à Costa Azul (o início do filme, em preto e branco, é uma joia). Dão carona para três garotas e para um menino, que se revela ser de fato uma garota disfarçada, que também é  ídolo da canção jovem. Ela se disfarçou para fugir da mãe exploradora e ter um pouco de tempo para si. 

No filme, há o sonho da juventude autônoma, aventureira, que iria se expandir nos doces anos de 1970.



Fez enorme sucesso. A estrela foi Cliff Richard, um cantor ie-ie, então muito popular.


Summer Holiday, arte ou entretenimento? Será que isso importa? Seja como for, eu gostei muito de dar voltas nesse cavalinho de carrossel.

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