Conhece-te a ti mesmo?

O autoconhecimento está no cerne da filosofia humanista desde Sócrates. Autognose, dizem os mais esnobes. 

É uma tarefa difícil. Mais fácil conhecer o que está fora de mim do que os obscuros movimentos da minha alma. Não é raro ouvirmos de pais ou educadores que tal criança "é" assim ou assado, definindo-a por um rótulo que irá marcá-la e que vem de fora.

O mistério da descoberta de si é certamente difícil e, de qualquer modo, nunca terminado. O devaneio, o tédio, por vezes nos dão algum indício.


Anne Louis Girodet - Retrato do Jovem Trioson - 1800


O ponto, porém, é que o caminho humanista pelo conhecimento não supre nossa inserção na consciência do mundo. O processo contínuo do autoconhecimento é crucial, mas não basta. 

O autoconhecimento não impede que reduzamos a meras estratégias, mais ou menos bem sucedidas, os modos de como lidar com o mundo. Não impede de nos tornarmos manipuladores das coisas e dos outros seres.

Para comer, precisamos, ou alguém precisa, cozinhar. Ou seja, é imperativo proceder a uma sequência de manipulações. 

Jean-Baptiste-Siméon Chardin - Natureza Morta - 1730, circa

A cozinha traz um exemplo de trabalho no qual a objetivação é a meta, sem a qual o resultado é impossível.

Esse resultado - a comida - é essencial para sobrevivermos, mas insuficiente se quisermos nos conhecer a nós mesmos. E também insuficiente se quisermos nos conhecer dentro do mundo.

Conhecermo-nos integrando o meio em que estamos inseridos tornou-se a balela mística de tantos gurus contemporâneos, que propõem a adesão "espiritual" a seitas, não raro em nome de um orientalismo aproximativo, seitas tantas vezes duvidosas, quando não criminosas. Elas procedem a um pseudo conhecimento do todo para, de fato, operar a anulação individual da consciência submetendo cada um ao próprio projeto genérico de controle.



Ao invés de seguir guru ou seitas eu, pessoalmente, prefiro os filmes de kung-fu. Se não tivesse uma profunda preguiça em relação a qualquer esforço físico, talvez eu o praticasse, embora os exercícios pareçam bem assustadores. Não, acho que não, para dizer a verdade: mesmo com disposição ou boa forma física, seria bem incapaz de me entregar a uma disciplina do corpo tão exigente.

Isso não impede que os filmes me ensinem.

Tomo Os discípulos da câmara 36, de Chia-Liang Liu (disponível em Netflix), o terceiro na esteira do sucesso que A 36ª Câmara de Shaolin (clique aqui) provocou, o segundo sendo A volta da 36ª câmara (clique aqui), todos do mesmo diretor.

A relação entre eles é frouxa, e o último, esse Os discípulos da câmara 36, não tem mais como protagonista o lendário monge San-Te (que aparece no filme como o mestre), mas seu discípulo Fang Shiyu, herói lendário existente na cultura chinesa desde o século XI (viva a Wikipedia!).





É uma comédia. O herói tem excepcional domínio do kung-fu. No início é apresentado em companhia de dois irmãos, e o trio faz pensar no humor dos Marx Brothers.



Depois, Fang Shiyu é obrigado a ficar no templo de Shaolin, como discípulo de San-Te, na câmara 36. O problema é que ele não tem mais nada a aprender e se torna um insuportável primeiro da classe, bagunceiro e provocador.



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Tudo se passa sobre um fundo histórico de resistência aos mandchus. Chia-Liang Liu, o diretor,  é mestre em construir cenas em que relações individuais, de concorrência ou confronto, integram-se no espaço empregado com rigoroso papel narrativo e, além disso, como sólida beleza expressiva.





A composição espacial é sempre balizada pelo deslocamento e posição dos atores.



É espantoso como um filme de intenções populares e comerciais chegue a tal ponto de beleza harmônica e rítmica. A qualidade da iluminação acrescenta ao caráter pictórico.



O que fazer com um discípulo tão sabido? Se ele não tem mais nada a aprender a respeito das técnicas do kung-fu, deve ainda assimilar a descoberta de seus limites humanos, e buscar vencê-los. A vaidade é o maior deles. O aprendizado do herói passa por muitas experiências, dentro e fora da câmara 36. Então, termina percebendo que não basta ter habilidades excepcionais, mas que a luta a levar exige integração e consciência do outro. Isso se faz sem que sua individualidade se dissolva num todo: a cena final, com uma derradeira malandragem, mantém o tom de comédia sem perder esse norte que é o vínculo entre o indivíduo autônomo e o universo coletivo.

Indo por esse caminho, O resgate, de Cheh (ou Chen) Chang, bem mais antigo (1971), complementa, em âmbito épico e trágico, a lição do precedente.

A história conta o resgate de um príncipe capturado por usurpadores. Nisso, o filme faz pensar em Os três mosqueteiros, e mais ainda, porque ele repousa numa relação de amizade fiel.

O espectador é tratado com dureza, com violência, em cenas de crueldade que se sucedem.



No início, o filme desencadeia grandes cenas de combates, em tratamento amplo. As lutas individuais são diminuídas em nome da força coletiva na amplidão da paisagem. Não é exagerado evocar Kurosawa como comparação.

O diretor emprega o zoom como se fosse um brinquedo novo.



Logo, porém, o grupo de resistentes diminui, e surgem as personalidades, maiores ou menores. Os esforços de cada um são sempre em benefício da ação conjunta, e esses guerreiros se dispõem aos sacrifícios conscientes e dolorosos.




Um por um vai caindo, até sobrar o último, capaz de levar o príncipe embora. É uma situação diversa de Leônidas nas Termópilas, porque não se trata de um massacre coletivo 

Jacques-Louis David - Leônidas nas Termópilas - 1814

Estamos em presença de lutadores que mantém suas individualidades, o que torna suas mortes mais sofridas, porque os conhecemos e distinguimos. A missão é mais importante do que as vidas de cada um.


Fascinante: o grupo não é fanatizado, nem mais determinante do que os indivíduos, não faz pressão sobre eles. 



A luta aqui é escolha consciente. O grupo não tem, de fato, um líder. Cada um se empenha segundo suas qualidades, de modo reflexivo, em escolhas claras. Nada de seguir o chefe.

Creio que esse modo de ser indivíduo e de inserir-se no coletivo torna-se, no filme, a grande lição. 

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