A educação pela prova.

Até hoje não acredito muito em técnicas pedagógicas. Quero dizer, técnicas elaboradas e apresentadas teoricamente. Técnicas ensinadas nos manuais. É bem provável que eu esteja semdo injusto. Mas falo a partir de minha experiência pessoal, bem longa, e que já está na reta final.

Eu me improvisei professor. Lembro-me do frio na barriga quando dei minha  primeira aula, numa sala grande do Institut d'Art, de Aix-en-Provence, que ficava num lindo hotel particulier dos séculos 17 e 18, bem no cerne velhíssimo do velho centro. Lembro-me do tempo enorme que eu levava para preparar cada uma delas, tempo muito espichado pela frequente exigência da organização dos diapositivos, coisa que os jovens, nestes tempos de Power Point, não têm ideia do que seja.

Mas desde sempre, dentro de mim, eu tinha um prazer enorme em ensinar. Isso, não porque me levasse a sentir-me superior aos meus alunos - e os alunos que convivem ou conviveram comigo sabem muito bem disso - mas porque, ao compartilhar tudo o que faz minha paixão na vida, quer dizer, as artes em geral, eu queria fazer novos cúmplices apaixonados. Queria compartilhar com eles as emoções que me nutriam e nutrem, provocadas pela pintura, música, literatura, arquitetura,  escultura, cinema, fotografia. 

Às vezes consegui, às vezes não.

Sempre pensei que bastam a um professor duas coisas: paixão pelo que ensina, e paixão pelos ensinados. Sem isso, não há escola de pedagogia que sirva. Com isso, talvez ela seja desnecessária.






Essas divagações pessoais me vieram ao espírito porque vi, recentemente, A 36ª Câmara de Shaolin, filme de 1978, dirigido por Liu Chia-liang e estrelado por Gordon Liu que, na época, era conhecido como o "Yul Brinner" oriental.

Ao que parece, foi baseado, livremente e de modo bem fantasioso, num monge real que teria sido treinado no mosteiro de Shaolin, célebre entre os fans de kung fu. Dizem os especialistas que se trata de um filme definitivo, de enorme influência sobre o gênero de artes marciais.

É composto por um prelúdio, uma parte central e um epílogo. O prelúdio mostra um jovem que vive em Cantão, sob o domínio dos Mandchus. Revolta contra os opressores, mas suas forças são muito insuficientes. Na parte central, ele se refugia no mosteiro de Shaolin, torna se monge e aprende a ser um lutador insuperável de kung fu. No epílogo, vence o governador local.

Se o filme todo é admirável, seu cerne pedagógico, longo, completo, descritivo, é o apogeu.



As câmaras são etapas que o aprendiz deve completar, assimilando o ensino específico de cada uma delas (técnica das mãos, do chute, força da cabeça, visão, e assim por diante). 



São cenas de treinamento rigoroso, exercícios físicos nos quais o diretor consegue incorporar uma sabedoria misteriosa. Embora não seja dita, o espectador intui a sabedoria junto com as provas pelas quais os alunos passam.

Porque é um ensino pela prova. Ali estão, feixes de madeira que flutuam na água, e o aprendiz deve se lançar neles para alcançar o outro lado. Se ele não consegue, o mestre o faz lançar na água um prato. Se for arremessado com muita força, o prato afunda. Se for atirado com jeito delicado, ele flutua. Resta ao discípulo incorporar a leveza necessária que faz o prato pairar sobre a superfície da água. A ele cabe encontrar o meio de fazê-lo.

Nós próprios, espectadores, nos incorporamos a esse discípulo que progressa pouco a pouco, e como que nos tornamos melhores ao longo do filme.





Liu Yude, o herói, chega ferido ao mosteiro de Shaolin. Ele conheceu dor, sofrimento, amargura, humilhação, e viu como seu povo era infeliz. É o sofrimento que o predispõe para o aprendizado. Esta situação me lembra um outro filme, em aparência sem nada em comum com A 36ª Câmara de Shaolin, mas que também se centra no aprendizado, na liderança e na revolta: Os dez mandamentos, de Cecil B. de Mille. Nunca me esqueço da fala dita pelo narrador, sobre Moisés: "Aprendendo que pode ser mais terrível viver do que morrer, ele avança graças ao crisol ardente do deserto, onde homens e profetas sagrados são purificados e expurgados para o grande propósito de Deus, até que no fim, chegando ao esgotamento da força humana , reduzido ao pó de onde veio, o metal está pronto para a mão do Criador."



De início, os monges não aceitam Liu Yudé, poque seu coração, cheio de ódio, o torna impuro e inapto a converter-se em um discípulo de Buda. Mas o superior do monastério acredita que, se o destino o trouxe, é que ele deve ter afinidade com Buda. 

Com seu aprendizado, Liu Yudé deverá descobrir que saber lutar é, no final, abandonar a propria luta e todo ato de violência.

Quando Liu Yudé tornou-se o monge San Te, e e passou a dominar como ninguém as técnicas e o espírito do kung fu, ele tem direito a escolher, como mestre, uma câmara para si. Então, decide criar a trigésima sexta, destinada a leigos, que possam aprender kung fu, e se armarem contra as opressões. 



Creio que a convicção de verdade que o filme transmite vem de que os atores são verdadeiros lutadores de kung fu. Realizado numa época em que os efeitos especiais eram muito reduzidos em relação a hoje, uma luta de kung fu não podia ser fabricada pelo computador. Os atores deviam mesmo saber lutar. Inda mais que Liu Chia-liang emprega longos planos sem cortes, o que obriga a uma coreografia perfeitamente regrada.

No entanto, os combates, no filme, são menos numerosos do que os episódios da ascese pelo aprendizado. O que se manifesta - a luta - deve ser uma consequência daquilo que o lutador formou dentro de si, uma emanação dele, e nunca uma técnica empregada.

Isso me faz pensar no quanto me contrariava a expressão muito empregada antigamente na universidade: "leitura instrumental". Ou seja, tenho que ler um livro para aplicá-lo no meu artigo, na minha tese. E não para que meu espirito o assimile e ele more dentro de mim.



Comentários

  1. Respostas
    1. Existe também o "curso instrumental", de mesma natureza. Vou exemplificar. Fiz uma disciplina uma vez sobre o livro do Bordieu que analisava a obra "Educação sentimental", de Flaubert. Como não era obrigatorio ler Flaubert, nenhum dos colegas o leu durante o semestre (eu já o havia lido duas vezes). Me causou desconforto era relação "esquizofrênica" de se discutir um romande durante um semestre inteiro sem se dispor a lê-lo. Mas discutir (in) cansavelmente o que Bordieu disse aobre ele. Que bordoada!

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