Nossa animalidade perdida

A cultura do Ocidente define a animalidade como o negativo do homem, por meio de qualidaddes que os animais não possuem: eles não possuem razão, como queria Descartes, nem liberdade, como definiu Kant. Não possuem alma.  Opondo-se aos homens, a caracterização dos animais serve, no mais das vezes, para definir o humano.

Albrecht Dürer Rinoceronte - 1515


"Na história européia, a ideia de homem se exprime no modo pelo qual ele se distingue do animal. A falta de razão do animal serve para demonstrar a dignidade do homem. Essa oposição foi pregada com tanta constância e unanimidade pelos precursores do pensamento burguês - os antigos judeus e os Pais da Igreja, depois na Idade Média e nos Tempos Modernos - que ela faz parte do fundo inalienável da antropologia ocidental como poucas outras ideias. Mesmo hoje em dia ela é ainda reconhecida (...) O homem possui a razão que progride impiedosamente, o animal que ele usa para chegar a suas conclusões irrevocáveis, possui apenas o terror irracional, o instinto de fuga que lhe é proibida." (Theodor W. Adorno e Max Horkheimer - "Sofrimento existencial", in A dialética da razão.)




Os dois filósofos prosseguem: "A transformação do homem em animal é um tema recorrente nas lendas das nações. Ser condenado a habitar o corpo de um animal equivale a uma danação." O homem se vê como homem porque expele de si o animal.


Wagner Willian =- 2010


Concebemos a cultura como oposta à natureza. É um meio para, aos nossos próprios olhos, nos arrancarmos da natureza e nos libertarmos dela.  Para que a inteligência e a razão se definisse como própria ao homem, era preciso que ela fosse negada aos animais. Quando a animalidade nos toma, manifesta-se  como pulsões, desvios, recalques que não foram bem controlados. Esse homem é um animal, dizemos. Ou ele é uma besta. Ou, cada vez mais especificamente: um burro, um cachorro, uma anta.



Alexandre-Gabriel Decamps - Macacos músicos - 1876



Essa visão racionalista exclui aquilo que, por excelência, faz do homem um animal: a sensibilidade, a capacidade de sentir prazer e sofrimento. O critério racional exclui, o critério sensível inclui.


Maurice Quentin de La Tour - Retrato de Jean-Jacques Rousseau - 1750 circa


"Longe de se oferecer ao homem como um refúgio nostálgico, a identificação com todas as formas de vida, começando com a mais humilde, propõe à humanidade hoje, pela voz de Rousseau, o princípio de toda sabedoria e toda ação coletiva; o único em um mundo cuja saturação torna mais difíceis, mas o quão mais necessárias, as atenções recíprocas que possam permitir aos homens de viver juntos e construir um futuro harmonioso. Talvez esse ensinamento já estivesse contido nas principais religiões do Extremo Oriente; mas diante de uma tradição Ocidental que acreditava, desde a Antiguidade, que era possível atuar nos dois lados trapaceando com a evidência de que o homem é um ser vivo e sofrente como todos os outros seres, antes de se distinguir deles por critérios subordinados, quem, então, exceto Rousseau, no-lo teria dispensado?" Claude Lévi-Strauss - Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem.




Por isso, o delicioso filme A estranha família de Gaspard, dirigido por Antony Cordier e disponível - grátis e sem necessidade de inscrição -  até 27 de agosto na plataforma Festival Varilux de  Cinema Francês em Casa é do maior interesse.

O filme mostra um zoológico decadente. As pessoas tornaram-se críticas e, em rejeição sumária, não gostam mais de ver animais presos. Desse modo, o zoológico perdeu público e renda.

Ocorre que os proprietários são uma família excêntrica, cuja relação com os animais é propriamente simbiótica. Eles próprios desenvolveram sua parte de animalidade, e tornaram-se, quase, seres intermediários.




O zoológico se situa ao lado de uma floresta, no centro da França, uma região chuvosa e bem pouco atraente para turistas. Nele, as leis da pura racionalidade não funcionam, e uma aparente desordem mantida por relações que oscilam entre o brutal, o erótico e o emotivo, se sustenta.




O retorno de Gaspard a esse implausível núcleo familiar, no qual cada um funciona como uma partícula que gira de modo errático, suscita as memórias da infância, período da vida no qual somos, como nunca, próximos dos bichos.

A estranha família de Gaspard zomba dos clichês politicamente corretos, para nos dar uma lição de humanidade dilatada, em que a parte animal acena na direção de um horizonte mais justo em nossa relação com o mundo.

Comentários